A vingança de talião

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Guerra! O mundo vive em guerra. Pelo menos desde que eu era criança, desde que meu pai voltou pra casa
correndo e anunciou à família: ”Paris caiu!” Caiu onde? Quem empurrou? Que coisas erradas fizera Paris,
tão abomináveis, para que merecesse ter caído? Eu era criança, não podia entender. Os grandes também não
entendiam.

Na semana passada, em Nova Iorque, a violência foi mais espetacular do que nunca na História, mais
teatral e gráfica, esteticamente assustadora, cruel, desumana calamidade. Estamos acostumados a ver tais
catástrofes no cinema, não na vida real. Por isso, esta tornou-se mais visível do que outras crueldades
que devastaram a África, assassinaram milhares de homens e de mulheres na América Latina e na Ásia, há
pouco e, na Europa, ainda ontem.

Madres de la Plaza de Mayo ainda procuram seus desaparecidos: às quintas-feiras, ao meio dia, andam
em círculo – medonho símbolo! -, mostrando fotos, falando dos filhos como se estivessem vivos, esperando
que voltem para casa, depois do cinema, antes do escurecer.

Ao meio dia, às quintas-feiras, dão voltas e voltas e não encontram ninguém. Em Buenos Aires e em outras
cidades, na Argentina e em outros países, Mães de Maio buscam parentes amados.

Granada, Panamá, Salvador, Nicarágua, Guatemala, Chile, Brasil, Uruguai – para falarmos apenas deste
continente, apenas destes últimos 30 anos – também foram vítimas da crueldade impiedosa de certas formas
de terrorismo de Estado. Milhares de vidas foram extintas. Nossos ditadores, é certo, são os grandes
culpados: mas… quem financia golpes de Estado?

Hipnotizado pela TV, vendo Nova Iorque estraçalhada, já não sou a criança inocente que um dia fui, mas não
entendo. Persevero na crença de que a humanidade é humana, ou pode-se tornar, se fizermos força. Quero
acreditar no que penso que acredito, mas meus olhos vêem o contrário do que quero ver. A humanidade é
desumana, sim – tenhamos a coragem de ver a verdade.

Quem perpetrou aquele terrível crime das torres? Quem, matando-se, tantas vidas matou? Sejam quem forem, os criminosos sobreviventes devem ser punidos de acordo com a lei, uma vez julgados, sua culpa comprovada.
Fique claro: ninguém deve ser punido porque ”é muito parecido com” ou ”é tudo gente da mesma laia”. Nenhuma punição deve ultrapassar a pessoa do criminoso, nenhuma pena atingir suas famílias, sua raça, nacionalidade, sua fé.

Ouvimos gritos de vingança – olho por olho! -, retaliação. Vimos, na TV, casas de oração sendo atacadas. Inocentes – entre eles, alguns brasileiros morenos – sendo agredidos na rua: vingança pelas torres destruídas.

Que nada se faça em nome da lei de talião, pois que ela proclama a necessidade de um juiz que faça justiça; a justiça reclama um tribunal; o tribunal descobre a verdade, impõe a pena. A verdade é terapêutica – não a temamos.

Talião é julgamento, não é vingança. Leiam o Êxodo (XXI, 24-25).

11/9 - Allende, N.York

11/9 - Allende, N.York

Os genocidas iugoslavos estão sendo julgados por um tribunal internacional. Até os nazistas que promoveram holocaustos – nazistas que mataram milhões de seres humanos e industrializaram a morte -, até os nazistas tiveram direito ao Tribunal de Nurembergue. Se quisermos justiça duradoura e não efêmera vingança, necessitamos de tribunais. Nenhum indivíduo, nenhum país, deve fazer justiça pelas próprias mãos, como era o caso antes da lei de talião. Não podemos retornar aos tempos bárbaros: somos civilizados… ou desejamos ser.

Nos Estados Unidos – quem o revela é o insuspeito Times, setembro, 16 -, congressistas estão discutindo a possibilidade de darem permissão à CIA para que seus agentes matem, legal e furtivamente, cidadãos
estrangeiros em países estrangeiros. Assassinatos que seriam realizados, é lógico, na calada da noite, sem
direito de defesa do condenado e sem testemunhas. A CIA poderia, além disso, contratar criminosos para
realizarem tais tarefas sibilinas.

O que significa a palavra ”retaliação”? Significa que a vítima deva tornar-se criminosa como seu algoz? Devem outros países seguir esse conselho – todos são, teoricamente, soberanos -, devem ordenar aos seus serviços secretos que façam o mesmo, matando estrangeiros no estrangeiro, inclusive estadunidenses nos Estados Unidos?

Devem as Mães de Maio tornar-se terroristas como a ditadura que matou seus filhos? Devem as Mães de Maio
carregar granadas e não fotos, bombas e não flores?

Devem os torturados levantar-se de suas sepulturas – se, ao menos isso, tiveram a sorte de ter tido! – e, como os fantasmas do Banquete de Macbeth, perseguir seus assassinos?

Vivemos tempos de perplexidades. Só a Razão será capaz de humanizar nossas emoções. Devemos pensar com nossos corações, sim, essa é a maneira certa de pensar: com nossos corações, que sabem ver o que pensam. Não podemos esquecer, porém, que temos cabeça. Somos capazes de pensar, refletir, compreender.

Legisladores norte-americanos estão discutindo uma lei que legalize os fora-da-lei, estimulando assassinos e
assassinatos. Sócrates se fazia perguntas; façamos o mesmo. Perguntemos: o que faremos?

Augusto Boal é teatrólogo

[ Publicado no Jornal do Brasil em 23/09/2001 ]

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