Entre a razão e a insanidade

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O historiador Eric Hobsbawm não acredita que o planeta esteja assistindo a um choque de civilizações entre Ocidente e mundo islâmico. Para ele, o que ocorre é um conflito de opiniões e os Estados Unidos devem se pôr a pensar em por que são odiados em grande parte dos países em desenvolvimento. Hobsbawm vê entre os objetivos dos terroristas um recado claro ao presidente americano, George W. Bush, que tem levado a cabo uma política externa voltada exclusivamente para os interesses dos EUA: que nenhum país é hegemônico o suficiente para governar o mundo sozinho. O historiador diz que a hora é de reflexão, e não de revanche.

Eric Hosbawm - Era dos Extremos

Eric Hosbawm - Era dos Extremos

Uma nova cultura de guerra parece estar surgindo neste início de século. O senhor teme que um possível choque entre as civilizações possa substituir o confronto das idéias?

ERIC HOBSBAWM: Não acredito, como também não reconheço essa nova modalidade de guerra. Guerra se declara a um estado, não a facções religiosas ou políticas. Quando lemos ou ouvimos os últimos noticiários sobre “guerra aos terroristas”, “guerra do bem contra o mal”, concluímos que, até agora, a guerra está sendo travada no campo da retórica. Trata-se, na verdade, de uma retórica auto-referencial dos Estados Unidos. É natural que os americanos despertem de um drama sangrento com sede de revanche, de retaliação, pois hoje eles se sentem violados em seus mais profundos valores. Tragédias provocadas pelo terror cimentam a solidariedade civil e, conseqüentemente, irrigam a sede de vingança. A hora, contudo, é de reflexão, não de revanche. O momento é inoportuno também para se falar em justiça, pois neste momento ela seria interpretada como vingança nos Estados Unidos. Mas falar em “choque entre civilizações” é uma tentativa de redirecionar o problema. Estamos assistindo a um conflito de opiniões, não a um choque entre civilizações. Cristãos e islâmicos formam uma única civilização. Ambos têm seus valores e dogmas bem sedimentados. Portanto, tentar colocá-los em lados opostos é pretender fragilizar o argumento histórico.

Qual o curso que o terror nos Estados Unidos segue?

HOBSBAWM: Há duas mensagens contidas nos ataques terroristas aos Estados Unidos, que todos nós, do mundo ocidental, deploramos, assim como igualmente reagiram a maioria dos países do Oriente Médio e da Ásia. Primeiramente, o governo americano deve se perguntar por que uma onda antiimperialista, antiamericanista, que ganhou força em todos os oceanos do mundo, inunda com tanta implacabilidade os Estados Unidos? Outra mensagem encontra-se embutida em duas outras indagações: por que os responsáveis por essa tragédia sacrificaram as próprias vidas no processo, e por que os Estados Unidos são hoje odiados com imensurável rancor não somente nos países árabes e islâmicos, mas em grande parte do mundo em desenvolvimento? A essas perguntas os Estados Unidos respondem com ponderações incipientes, dizendo que a liberdade e a democracia foram atacadas. A resposta não é tão simplista. A mim, pessoalmente, parece que alguém está tentando dizer ao presidente George Bush que sua política externa negligenciou as necessidades de grande parte dos países árabes e islâmicos, dos países em desenvolvimento; que nenhum país é hegemônico o suficiente para governar o mundo sozinho.

O senhor acredita que a reação dos Estados Unidos, até o momento, tem se revelado infrutífera? Que Osama bin Laden é o culpado?

HOBSBAWM: Não é improvável que Bin Laden esteja envolvido, mas estamos à espera de evidências irrefutáveis. No momento, o presidente Bush reage da maneira como os americanos desejam que ele reaja. A prisão de suspeitos nos Estados Unidos é uma resposta imediata à ansiedade, à angústia do povo americano. A declaração de guerra, igualmente. Mas é no fronte da política, da diplomacia — e não da força — que a resposta americana se mostrará mais eficiente. A política de assassinatos a mentores de ataques suicidas, conduzida por Israel na Palestina, tem fracassado. Se Bush decidir copiar o modelo israelense para solucionar um problema que até agora se encontra na esfera doméstica americana, é provável que se defronte também com o fracasso. Invadir o Afeganistão, assassinar Bin Laden e seus seguidores? Não me parece a reação mais eficiente. Se Bin Laden é mesmo o responsável pelos ataques aos Estados Unidos, outras células do terrorismo podem ser encontradas fora do Afeganistão. Quando o presidente Bush solenemente anuncia que declara guerra aos terroristas, ele não quer dizer que está se mobilizando contra o ETA ou o IRA. É isso o que o mundo muçulmano, igualmente em choque, se pergunta. Quando se fala em guerra, devem-se avaliar as conseqüências que os excessos de retórica podem gerar.

O senhor, então, não acredita que estejamos próximos de uma Terceira Guerra?

HOBSBAWM: Não creio. Acho que o bom senso tende a prevalecer sobre o sentimento de intolerância. Qualquer sugestão de ação militar agressiva no Afeganistão será contraproducente: será a oficialização do recrutamento de uma nova geração de terroristas suicidas.

Vários líderes europeus, como o primeiro-ministro Tony Blair, em um primeiro momento reagiram com simpatia à idéia de lutar lado a lado com os Estados Unidos na guerra contra o terrorismo. Diante da reação unificada do mundo islâmico, eles recuaram. Esse recuo pode levar ao isolamento dos Estados Unidos nesse processo?

HOBSBAWM: Acredito que sim. A Europa teme uma eventual guerra declarada nos limites da paixão. Da China ao Brasil, Bush conta com a simpatia internacional para uma resposta eficiente ao terrorismo. Mas, entre esses países, o uso da força, até o momento, tem sido rejeitado. A melhor contribuição que Tony Blair poderia dar aos Estados Unidos é dizer a Bush para não se precipitar; para não se lançar em uma aventura militar. Aqui na Grã-Bretanha, onde convivemos com o terrorismo há quase 40 anos, já aprendemos que não podemos falar a mesma língua — da violência — que os terroristas falam. Seria a galvanização do inimigo. Quando o mundo se inclina entre a razão e a insanidade, como podemos observar agora, poucas certezas permanecem, além do fato de esta guerra estar sendo declarada em nome dos que defendem a paz.

Na sua opinião, a mídia tem se mostrado responsável na cobertura da tragédia americana?

HOBSBAWM: Acho que não. Como eu disse antes, está havendo um choque de opiniões, e não entre civilizações, patrocinado pelos órgãos de imprensa. Mas esperemos que a opinião pública saiba distinguir entre as duas vertentes.

Uma nova era dos extremos se anuncia para o século XXI?

HOBSBAWM: Os Estados Unidos são um país que despertam crítica e indignação em casa e no exterior. Vietnã, Nicarágua, os direitos palestinos negligenciados, são alguns casos que têm fomentado esses sentimentos. Mas somos meros espectadores da História. Vamos ver o que ela nos dirá. Ainda é cedo para avaliar.

 [ Entrevista do historiador Eric Hobsbawm por Cassia Maria Rodrigues, correspondente d’O Globo em Londres ]

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