Temo um novo macarthismo

 

Caça às bruxas

Caça às bruxas

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”Temo um novo macarthismo”

Além de apoiarem como nunca o presidente George W. Bush, que atingiu recentemente o recorde de 90% de aprovação popular, os americanos são amplamente favoráveis à redução das liberdades civis em troca de duras medidas policiais que evitem novos atentados como os do dia 11 contra o World Trade Center, em Nova York, e o Pentágono, em Washington, conforme uma pesquisa publicada ontem pelo jornal The Washington Post.
 
Segundo o diário, mais de 70% dos americanos aprovam ações como a interceptação de mensagens eletrônicas sem uma permissão expressa dos tribunais e a detenção por tempo indeterminado de estrangeiros. Essas propostas fazem parte de um pacote de segurança enviado ao Congresso pelo governo, que pediu sua aprovação com urgência.
 
Na contramão da maioria, Nadine Strossen, presidente da Associação Americana de Liberdades Civis (ACLU na sigla em inglês), diz que essas medidas podem levar a uma caça às bruxas semelhante à perseguição liderada nos anos 50 pelo senador Joseph McCarthy, que se lançava contra qualquer pessoa acusada de ser comunista.
 
 ”Muitas das medidas propostas agora copiam algumas das piores características da era McCarthy”, disse Nadine ao Jornal do Brasil, por telefone, de sua casa em Nova York. Para a presidente da ACLU, o governo já tem poderes demais e a questão é outra: ”Vários dos supostos envolvidos nos atentados do dia 11 aparentemente já estavam em listas de suspeitos do FBI. As autoridades agiram? Fizeram uso dessa informação?”
 
Entrevista de Nadine Strossen por Sérgio Benevides
 
– Que conseqüências o pacote proposto pelo governo pode trazer para a sociedade americana?

– Ainda é cedo para fazer previsões mas, se aprovado, esse pacote reduziria dramaticamente as liberdades nos Estados Unidos, mesmo no caso de pessoas que não são suspeitas de crime algum.

No entanto, estou muito animada devido a acontecimentos recentes. Parlamentares dos dois grandes partidos políticos ouviram as críticas feitas pela minha organização e por outros grupos preocupados com os direitos individuais, e disseram ao secretário de Justiça, John Ashcroft: ”Não, nós não vamos aprovar essa legislação imediatamente.”

É verdade que o Congresso aprovou uma resolução que autoriza o uso de força militar, mas mesmo isto foi relativamente limitado. Por exemplo, os parlamentares chegaram a examinar uma resolução que daria mais poderes ao presidente, tanto nos Estados Unidos quanto fora do país. Mas, como resultado da pressão da minha organização e de outros grupos, o Congresso não aprovou a proposta.

– Que tipo de poderes?

– Eram muito amplos e vagos: todos os poderes necessários para combater o terrorismo nos Estados Unidos e no exterior. O Congresso também examinou uma declaração formal de guerra, e não a aprovou. Isto é muito significativo porque, conforme nossa Constituição, uma declaração desse tipo dá automaticamente ao presidente poderes de emergência para suspender algumas liberdades civis.

O presidente, os militares e outros funcionários do governo dizem o tempo todo que estamos em estado de guerra contra o terrorismo. Mas tudo isto não passa de retórica. Em termos legais, não estamos em guerra.

Mas há outras coisas que causam preocupação. Uma delas é o preconceito e a violência contra os árabes-americanos, as pessoas que vêm do Oriente Médio, as pessoas com raízes islâmicas ou aquelas que são confundidas com árabes. No entanto, tenho que ressaltar que não me lembro de situação alguma em que funcionários do governo não tenham respondido apropriadamente às queixas a respeito desse tipo de discriminação.

O prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, e o presidente Bush, em suas primeiras declarações no dia 11 de setembro, disseram que não deveríamos admitir intolerância de tipo algum com base em crenças religiosas ou diferenças étnicas, e que não poderíamos permitir que alguém fosse tomado como bode expiatório.

– Mas o FBI está pedindo a universidades arquivos sobre estudantes estrangeiros.

– Sim. De fato há problemas em torno dos estrangeiros. Tanto a legislação proposta pelo governo quanto as investigações, não apenas a respeito dos estudantes, mas também sobre as dezenas de pessoas que foram detidas, estão baseadas, em muitos casos, no fato de os suspeitos serem imigrantes.

Infelizmente, como resultado da Lei Antiterror de 1996, o Executivo já tem poderes amplos para deter e investigar pessoas mesmo com base em provas secretas. Estamos fazendo uma pesquisa para ver que instrumentos legais podemos usar em defesa dessas pessoas.

– A respeito do pacote apresentado pelo governo ao Congresso, quais são os riscos que essas medidas representam caso aprovadas?

– Há três grandes perigos. Primeiro, o Executivo teria poder para deter indefinidamente e para deportar qualquer estrangeiro, mesmo os que vivem há muito tempo no país em situação legal, caso o secretário de Justiça afirme que a pessoa em questão pode representar um perigo para a segurança nacional. O secretário de Justiça não precisa fornecer prova alguma.

Já é ruim o bastante o fato de que, de acordo com as leis de 1996, esse tipo de detenção possa acontecer com base em provas secretas. Agora, o governo está propondo que as detenções ocorram sem prova alguma. O segundo grande problema seria o poder do Executivo para fazer vigilância eletrônica, também sem limites judiciais. O governo americano já tem amplos poderes nessa área. A maioria das informações interceptadas atualmente inclui muito mais mensagens inocentes do que dados relacionados a crimes.

Com a nova legislação, esses poderes seriam ampliados, e as barreiras judiciais, reduzidas. Isto resultaria em violação da privacidade, da liberdade de expressão e da liberdade de associação.

A terceira maior área de preocupação está relacionada ao poder que o Executivo teria para garantir o cumprimento da lei. Embora a proposta de Ashcroft tenha sido apresentada como algo necessário para combater o terrorismo, na verdade a maioria das medidas se referem não apenas a crimes dessa natureza, mas a todos os crimes. Nos Estados Unidos levam-se aos tribunais vários casos envolvendo drogas, incluindo a posse e o uso de maconha, algo que, para muitos, sequer deveria ser considerado um crime. Mas mesmo nesses casos o governo poderia usar seus novos poderes, incluindo a permissão para realizar buscas secretas.

Atualmente, apenas em circunstâncias muito excepcionais o governo pode pedir à Justiça que atrase a notificação de busca a um suspeito. Isso só acontece quando se está investigando um crime muito sério e quando as provas correm o risco de serem destruídas caso a notificação fosse feita. Segundo o pacote apresentado ao Congresso, essas buscas secretas poderiam se tornar muito mais comuns.

Outro problema da legislação é que a definição de terrorismo é muito extensa e engloba também protestos políticos legítimos e pouco violentos. Por exemplo, alguém que participe de uma manifestação contra o Banco Mundial e quebre a janela de um prédio pode ser enquadrado na definição, porque os elementos em questão são a motivação ideológica e os danos à propriedade.

– Se o pacote não for aprovado, o que poderia usado em seu lugar para combater o terror?

– Em primeiro lugar, o governo já tem poderes muito amplos. E é importante notar que conseguimos formar uma grande aliança para lutar pela liberdade, uma coalizão que inclui não apenas a ACLU e outros grupos de defesa dos direitos civis, mas também algumas das entidades mais conservadoras dos Estados Unidos, como a Organização dos Valores Tradicionais da Família.

Numa sociedade democrática não podemos aceitar uma mera afirmação, feita pelo Executivo, de que é necessário aprovar esta ou aquela medida. O Congresso tem o dever de examinar os poderes que já existem e de perguntar por que esses poderes não foram suficientes para impedir um ataque terrorista.

Vários dos supostos envolvidos nos atentados do dia 11 aparentemente já estavam em listas de suspeitos do FBI. As autoridades agiram? Fizeram uso dessa informação? Alguns especialistas em inteligência disseram já dispor de tanta informação, que não podem sequer analisá-las.

É claro que o governo tentará aumentar seus próprios poderes apelando para o medo das pessoas. Mas temos tido exemplos repetidos na história americana de reações de pânico que depois lamentamos profundamente: o confinamento de japoneses americanos durante a Segunda Guerra Mundial e a lista negra composta de pessoas com tendência de esquerda durante o macarthismo, além da deportação de estrangeiros e a prisão de jornalistas que criticaram o governo no século 18. O FBI é notório por seus abusos de poder, não para nos proteger de ameaças internas ou externas, mas para proteger o governo de movimentos legítimos de reforma.

– Existe um risco de se criar um novo marcarthismo?

– Certamente. Temo um novo macarthismo. Muitas das medidas propostas agora copiam algumas das piores características da era McCarthy. Reproduziu-se a noção de culpa por associação, além da caracterização de crime ideológico e do poder do governo de impedir que certas pessoas entrem no país devido a suas crenças políticas.

Há uma medida retroativa no novo pacote segundo a qual se alguém deu dinheiro a uma organização legal, que depois é considerada terrorista, então essa pessoa pode ser condenada por um crime muito sério, o de apoiar atividades terroristas, mesmo que essa não tenha sido sua intenção.

– Há outra medida segundo a qual podem-se conseguir provas fora do território americano seguindo as diretrizes de inteligência e não as diretrizes judiciais. O que isso significa?

– Atualmente, o governo não pode procurar informação sobre alguém sem a suspeita de que essa pessoa cometeu ou cometerá um crime, e sem autorização da Justiça.

Em 1978 foi aprovada uma lei que deu à CIA e outras agências poder para vigiar estrangeiros fora do país, ou agentes de governos e organizações estrangeiros nos Estados Unidos. Mas essa lei é restrita à área de inteligência internacional e não pode ser usada para reunir dados sobre americanos. Conforme o novo pacote, o FBI e a CIA poderiam obter informações também sobre americanos, mesmo nos Estados Unidos e sem que houvesse uma forte suspeita contra essas pessoas.

– Há risco de o Congresso aprovar o pacote apenas com pequenas mudanças?

– Certamente, embora eu não saiba dizer o quão grande é esse risco. Ainda é cedo para fazer qualquer previsão. Há parlamentares que são favoráveis à aprovação de algumas medidas não muito polêmicas, há outros favoráveis à aprovação de todo o pacote, mas em caráter provisório, e outros que defendem que não se aprove medida alguma da proposta do governo.

– Se algumas das medidas mais drásticas forem aprovadas, há alguma forma de derrubá-las?

– Sim. Depois do atentado de 1995 em Oklahoma, aprovaram-se dois grandes blocos de leis com o mesmo objetivo das medidas propostas agora: aumentar o poder de vigilância eletrônica das autoridades e estender o poder do governo sobre estrangeiros. A ACLU foi à Justiça argumentando que várias daquelas medidas violavam direitos constitucionais, e fomos bem-sucedidos. Mais recentemente, ganhamos dois casos na Suprema Corte.

– Essas medidas não representam uma contradição para um governo que diz lutar contra o terrorismo em nome da liberdade e da democracia?

-Certamente. E é interessante observar que toda a retórica do presidente Bush e de vários parlamentares se dedica a afirmar repetidamente que os terroristas conquistariam uma vitória se nos aterrorizassem a ponto que abandonássemos a liberdade, a igualdade, a democracia e a diversidade, que são as características da sociedade e que teriam provocado o ódio dos que nos atacaram.

[ Entrevista de Nadine Strossen por Sérgio Benevides publicada em 30/09/2001 no Jornal do Brasil ]

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