Um novo tipo de Hiroshima

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Para o filósofo francês Paul Virilio, os atentados ao WTC simbolizam nova relação de forças

Para o arquiteto e filósofo francês Paul Virilio, com a demolição do World Trade Center também vem abaixo o pensamento militar hegemônico. O criador da estética do desaparecimento, tido como apocalíptico ao escrever um artigo em 1993 no qual analisava a movimentação por trás do atentado às torres gêmeas de Nova York naquele ano, vem fazendo advertências sobre a nova relação de forças no mundo.

Há anos, o filósofo analisa as transformações do mundo moderno. Alguns de seus livros, como “O Espaço Crítico” (Editora 34, 1993), “Velocidade e Política” (Estação Liberdade, 1996) e “A Máquina de Visão” (José Olympio Editora, 1994), tornaram-se obras de referência.

Virilio também é dromologista (quem estuda a velocidade). Não por acaso, é fascinado por acidentes. Desde o primeiro descarrilamento de trem até crashes da bolsa, ele considera que acidentes servem como um tipo de diagnóstico por meio do qual pode-se avaliar o valor e o perigo de novas tecnologias.

Detratores o acusaram de apocalíptico por sua crítica à aceleração provocada pela informática e pelos meios de comunicação, capazes de transmissão em tempo real. Virilio se pergunta se é possível “democratizar a onipresença, a instantaneidade ou o imediatismo, que são precisamente atributos do divino, isto é, da autocracia”. Leia abaixo a entrevista.

World Trade Center 11/09/2001

World Trade Center 11/09/2001

Pergunta – O sr. havia comentado o primeiro atentado contra o World Trade Center e explicado em que medida aquilo significava o início de uma nova era.

Paul Virilio – Em março de 1993, publiquei o artigo “Delírio em Nova York”, recompilado posteriormente em um livro (“Paisagem de Acontecimentos”, não editado no Brasil), no qual me referia ao atentado do qual o World Trade Center foi alvo naquele ano. O saldo daquele atentado foi de apenas cinco mortos e alguns feridos, mas a caminhonete carregada de explosivos poderia ter derrubado o arranha-céu.

Esse atentado parcialmente fracassado me pareceu o símbolo de uma nova relação de forças, a premonição de uma Hiroshima de um novo tipo. Disseram que eu tendia ao catastrofismo, que minhas reflexões era apocalípticas e exageradas, quando os fatos, sim, eram um exagero.

Agora leio no “Le Monde” que o atentado de 11 de setembro de 2001 era inimaginável. É um escândalo! Eu, oito anos antes, sentado em minha mesa de arquiteto, falei da fragilidade desses edifícios arranha-céus, símbolos que não levam em conta a insensatez de um urbanismo que multiplica suas torres gigantescas e, assim, multiplica também sua fragilidade.

As de Kuala Lumpur, as mais altas do mundo, também tiveram de ser desalojadas. Para mim, em 1993,  já estávamos diante de uma grande ação de um terrorismo distinto, contíguo a Hiroshima ou Pearl Harbour, mas ninguém quis levar a sério tal advertência.

Há um ano assistimos à quebra da chamada “net-economia” e, agora, o que afundou diante de nossos olhos foi a “net-estratégia” do Pentágono. Falou-se de guerra eletrônica e do mundo virtual, e o que vimos foi que aviões comerciais têm muito mais poder de destruição do que dez mísseis. Mísseis não puseram abaixo as torres gêmeas. E o que aconteceu demonstra o absurdo do pensamento militar hegemônico. Os militares aparecem como incompetentes absolutos.

Pergunta – O sr. afirma então que um novo tipo de guerra está começando.

Virilio – Derrubar o World Trade Center é um ato de guerra histórico, equivalente ao assassinato de 28 de junho de 1914 em Sarajevo. Ali começou a Primeira Guerra Mundial, e em Nova York explode a primeira guerra da globalização.

Fico assombrado com a futilidade da maioria das análises, que fala de guerra ou de terrorismo de maneira ultrapassada, localizando-as geograficamente, quando estamos diante de uma declaração de guerra global, que não tem nada a ver com a tradição “clausewitziana” [em referência a Carl von Clausewitz, autor de “Da Guerra””. Comenta-se que as imagens são como as de um filme-catástrofe, quando o catastrófico é o fato, não suas imagens.

No caso do World Trade Center, a relação custo-benefício é prodigiosa, alcançada por homens armados com facas, homens que causaram danos comparáveis aos piores bombardeios da Segunda Guerra Mundial.

Pergunta – Assim como na Guerra do Golfo, existem imagens de impacto, mas as das vítimas não são divulgadas.

Virilio – É uma coincidência com origens totalmente diversas. No caso da Guerra do Golfo, estávamos diante de uma estratégia de dissimulação que apontava zero mortos para um lado, enquanto camuflava o número de vítimas do outro lado. No caso do World Trade Center, pesa a questão dos escombros. Quando pequeno, vivi a experiência dos escombros, de procurar entre prédios derrubados por bombas. Foi em Nantes e não era possível ver os corpos, recobertos de pó.

O que sabemos é que a cifra de mortos será superior àquela apontada em um primeiro momento. A cifra, terrível, nos será revelada simultaneamente às imagens dos cadáveres, quando o inimigo, real ou suposto, for identificado e quando for decidido o tipo de reação norte-americana. Enquanto Bush não decidir isso, o número de mortos será segredo de Estado.

Pergunta – O número de vítimas pode questionar as opções tecnológicas adotadas pelo Pentágono?

Virilio – Isso vem de uma tradição remota. Durante a Primeira Guerra Mundial já foi dito que os norte-americanos preferiam lutar com máquinas entrepostas, enquanto os europeus enfrentavam homens. O Pentágono está implicado em uma opção tecnológica que alimenta o complexo militar-industrial, que absorve grandes somas do orçamento. Basta ver o projeto do escudo antimísseis. Nenhum míssil, exceto os nucleares, havia causado dano semelhante ao dos aviões em Nova York.

Pergunta – As contínuas referências de Bush à luta do “Bem” contra o “Mal” e suas repetidas invocações a Deus o colocam como um fundamentalista de gravata.

Virilio – É inquietante que um tipo como George W. Bush esteja à frente do governo dos Estados Unidos. É um momento grave para a paz do mundo e em nenhum momento ele transmitiu a sensação de ser um homem de Estado, um Churchill ou um De Gaulle.

Sabe, essa não é uma guerra “clausewitziana”, não é substancial, com exércitos, bandeiras e inimigos. É acidental, na qual tudo é imprevisto, o inimigo é anônimo e as ações se assemelham a acidentes. Clausewitz se preocupou muito quando Napoleão foi derrotado pela resistência espanhola porque descobriu que a guerra, quando ultrapassa os limites da guerra, não é passível de condução.

Agora entramos em um período de desequilíbrio do terror, depois de ter vivido quarenta anos de equilíbrio do terror. E esse desequilíbrio não é a continuação da política por outros meios. Hoje, a necessidade de um líder político passa pela capacidade de repolitizar o mundo, conferindo sentido e inteligência aos fatos. Bush não está à altura. Não basta ser meramente reativo, isto é, reacionário. 

[ Entrevista do filósofo francês Paul Virilio por Octavi Martí, publicada pélo ‘El País em 25/09/2001 ]

 

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