Nova York, fevereiro de 2003

y354

New York nightCaro amigo,

Chegamos a Nova York na quarta, e era como se chegássemos a um país em guerra (sei por filmes e fotografias).  Nosso hotel estava cercado por tropas armadas e, mal subimos ao trigésimo quinto andar aonde nos sitiaram, ouvimos pela televisão que os alvos preferenciais dos terroristas nos próximos momentos eram hotéis freqüentados por judeus, lugares de judeus, e edifícios altos. Da janela do quarto víamos um minúsculo Empire State Building nosso vizinho.  Éramos de dar inveja a quem quisesse estar na mira dos terroristas.  

Telefonei a pessoas amigas.  Uma ex-colega do doutorado, madrinha da minha filha, não se deu conta que mal chegávamos, porque corria a comprar mantimentos para os dias do ataque  que já se avistavam; um amigo psicanalista americano me passou incontinenti à sua esposa brasileira, porque corria a visitar sua filha no Texas.  A esposa brasileira também corria, faltavam-lhe lanterna, scotch tape, pilhas e radiozinho para se isolar no banheiro da casa.  Aconselhou-me a fazer o mesmo, uma vez que nosso hotel seria muito visado; que eu não esquecesse de comprar muita água e comida enlatada, porque o ar e a água certamente ficariam contaminados de radioatividade por dias sem conta.  Concluí que os conselhos de Voltaire de que cada um cultivasse seu jardinzinho tinham caído em bons ouvidos, não só americanos como também brasileiros. 

Felizmente, logo encontramos os amigos que percebiam alguma coisa além do seu quintal.  Entre eles Bin Laden voltouum casal de psicanalistas judeus, amigos queridos, participantes de movimentos pela paz, voltados para o mundo, profundamente humanos.  Ouviram quando lhes disse que as informações que recebiam de jornais e canais de televisão estavam sendo deformadas a fim de implantar terror,  pânico e pavor de um ataque iminente. Não podiam nem acessar a BBC, por exemplo.  Assim imobilizava-se qualquer pensamento sobre o que acontecia no país e que resultava dos desmandos do governo Bush. Mas a televisão era implacável, com o anúncio permanente do “high alert orange“,  e com veicular as ameaças  do Bin Laden, que exortava os muçulmanos a atacarem os Estados Unidos, suas grandes cidades,  e interesses americanos e judeus através do mundo.  

Através dos dias, a possibilidade de exercerem uma crítica ao que sucedia cada vez fraquejava mais,  e os senti indefesos diante da campanha de propaganda maciça de seu governo. 

Minha amiga ouvia seus pacientes, e eram notícias de tanques cercando  o downtown, ou de falta de produtos para enfrentar os dias do ataque, ou novos kits preventivos que acabavam de aparecer ou de sumir dos mercados.  Nossos amigos queriam proteger-nos e tranqüilizar-nos: exortavam-nos a ficarmos em sua casa num momento, e no seguinte a que voltássemos o quanto antes ao Brasil, para em seguida sentirem-se abandonados por nós, como se os deixássemos por lá entre ameaças crescentes.  Queriam ser reassegurados de que nada havia a temer, e quando nos percebiam temerosos era como se os traíssemos por nos deixar afetar pelo alarma geral e não os proteger contra acreditarem nele.  Não queriam acreditar, não conseguiam deixar de fazê-lo. 

Minha amiga falou-me que compraram uma casa na Itália aonde vão todos os anos lecionar, mas temem o anti-semitismo crescente na Europa, assim como a ameaça constante aos Estados Unidos depois de 11 de setembro.  Amam NY, sua cidade, e se sentem mais e mais vulneráveis.  Acabaram de entrarem de sócios num clube judeu de esportes, que abriu recém e temem lá ir.  Abalados, e mais a cada dia.  

Passaram a compreender que se pode odiar os que ameaçam, e temem odiar; já a propaganda constante do governo contra os muçulmanos permanentemente ameaçadores os ataca e deforma.  A nós também, ao andarmos pelas ruas coalhadas de carros de polícia cercando quarteirões, ao olharmos as bancas de jornais  de onde um Bin Laden ameaçador nos ameaçava de extermínio, ao sentirmos o coração da cidade disparando de medo por entre o frio das esquinas, ao percebermos, meu filho adolescente e eu, que nos protegíamos mutuamente contra percepções implacáveis que sinalizavam um tempo de guerra. 

Ao voltarmos para o Brasil, quase que perdemos o avião: foram três horas de Manhattan até o aeroporto, um trajeto que nos seus piores dias poderia chegar a uma hora.  Tudo se fazia funil, coador, impecilho.  Pontes e túneis se fechavam.  Os carros saíam, abandonavam a cidade sitiada.  No aeroporto, mais demoras: tiraram-me os sapatos, aliás tiravam de todos os seus sapatos de couro, a um senhor à minha frente, levantavam a camisa, apalpavam-lhe o corpo inteiro.  

New York Times 11/9Uma  voz discordante, o canal 13, public television: assisti a entrevistas de Kissinger e de Thomas Friedman, colunista do New York Times que consegue manter seu emprego apesar de não aplaudir o governo Bush. O entrevistador e comentarista, Charles Rose, mantinha uma perspetiva crítica e colocava a Kissinger perguntas que tinham em seu bojo toda uma análise em perspectiva da tradição imperialista da política externa americana. 

Em São Paulo, aonde fizemos escala, comprei jornais nacionais e um Corriere della Sera, por lá dando sopa. Um artigo sobre a entrevista do Tarek Aziz com jornalistas de todo o mundo traz que ele teria ameaçado a Europa, que os europeus deveriam estarem atentos quando dizem que ajudarão a Bush e, a uma “pergunta do correspondente do quotidiano israelense Maariv, Menachem Gantz, se seu país não reagiria a um ataque golpeando a Israel de algum modo, Tarik abandonou o tato diplomático e a capacidade sua de agradar à mídia ocidental:  ‘Ao comparecer a esta conferência, não tinha a intenção de responder a perguntas de jornalistas israelenses’,  disse categórico. Ponto. 

O presidente da Imprensa estrangeira, Eric Jozsef, francês do Libération, que não é de modo algum considerado um anti-semita, foi muito tímido diante dessa recusa.  Pediu a Aziz que respondesse, mas depois, tendo em vista a sua irredutibilidade, passou a outra pergunta. Alguns reagiram assobiando, outros abandonando o recinto.  “O que teria acontecido se Sharon se recusasse a responder a um jornalista árabe?”, foi o comentário indignado de Yossi Bar, da rádio israelense….”  

Nenhum outro jornal trazia esta notícia. 

Mais uma vez se fazia evidente o perigo do maniqueísmo.  Saddam é ameaça que nem o  Bush.   Na televisão, o mesmo cenário: os protestos contra a guerra no Iraque foram acompanhados por soldados de armas em punho; não tão diferente de NY, aonde não se permitiu a marcha a fim de proteger as pessoas contra possíveis ataques terroristas. 

Os ditadores se parecem entre eles, como Arendt havia bem notado quando abordou o  Totalitarismo.

Um grande abraço,

Edelyn


Edelyn Schweidson, ativista do PAZ AGORA|BR é psicanalista e vive no Rio de Janeiro.  

Comentários estão fechados.