'O Pianista' no STF

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O filme de Roman Polanski, entre outros dolorosos méritos, nos lembra que as angústias do presente não podem encobrir o horror passado. Sobretudo quando esse horror não foi suficientemente purgado e expurgado. Por mais angustiados que estejamos com o que ocorre no Iraque, a tragédia da Segunda Guerra Mundial está ai, inteira, intacta, maciça. Insuficientemente entendida, precariamente resolvida, maldosamente disfarçada. Reticente.

O Pianista de PolanskiPronta para ser reativada. O inferno visto e vivido pelo virtuose Wladislaw Szpilman em Varsóvia entre 1939 e 1944 não é apenas um fragmento do mais brutal conflito bélico, é a escalada do terror nazista antes de alcançar o seu ponto culminante: os campos de extermínio. A transformação de um dos ”ismos” do século XX num dos espasmos mais bestiais da história da humanidade não ocorreu por acaso. Deu-se através de uma encarniçada campanha de propaganda racista empreendida por Hitler e Goebbels ao longo de 13 anos até a conquista do poder.

As diabólicas cenas recriadas pela câmera de Polanski no Gueto de Varsóvia mostram a que ponto pode chegar a natureza humana quando intoxicada pela noção de que vale tudo contra a ”raça inferior”. As pistolas Lueger estavam azeitadas por um profundo desprezo pela humanidade e pelo ódio a uma de suas partes.

O Pianista será rememorado e discutido na próxima quarta-feira em Brasília num dos plenários mais importantes da República. Entre os debatedores não estarão críticos de cinema, historiadores ou sobreviventes do Holocausto. O Supremo Tribunal Federal não vai examinar o filme mas terá de encarar a macabra história que o motivou ao julgar o pedido de habeas-corpus impetrado pelo editor gaúcho Siegfried Ellwanger, já condenado em duas instâncias pelo crime de racismo com a publicação de livros de nítido teor nazista e incitamento contra os judeus.

Levante do Gueto de VarsóviaNão está em discussão a questão da liberdade de expressão, mas a alegação do editor, acolhida pelo ministro-relator, Moreira Alves, de que não sendo os judeus uma ”raça”, os livros antijudaicos não se enquadram como propaganda racista. O ministro Moreira Alves aposenta-se no próximo dia 19. Não lembra ou não sabe que nesse dia transcorre o 60º aniversário do Levante do Gueto de Varsóvia – uma das seqüências mais sangrentas de O Pianista, quando os correligionários alemães do editor Ellwanger liquidaram os remanescentes da ”raça inferior” que ousaram rebelar-se.

 O ministro Maurício Corrêa, que interrompeu o julgamento em dezembro, agora vai contestar o relatório de Moreira Alves. Praticamente adiantou o seu voto, baseado na farta legislação internacional que amplia o conceito de raça além das características morfológicas (caso dos negros, asiáticos ou índios) e estende-o para culturas, etnias e religiões. Os demais ministros receberam alentados pareceres de grandes juristas e constitucionalistas provando que tanto o culto à supremacia ariana como a disseminação de preconceitos antijudaicos, antiárabes, antiislâmicos, antieslavos ou anticiganos são formas de discriminar, inferiorizar e perseguir grupos humanos. Consciente da importância desse julgamento, o presidente do STF, ministro Marco Aurélio de Mello, determinou a sua transmissão ao vivo pela TV Justiça.

 Mas existem fatos recentes que os meritíssimos não podem ignorar e demonstram o crescimento das doutrinas nazistas no Brasil com sua carga letal de segregações e rancor. Nos últimos dias de janeiro, em Taiúva, interior de São Paulo, um jovem de 18 anos, curso secundário completo, armado com um revólver 38, invadiu a antiga escola, feriu seis colegas e depois matou-se com um tiro na cabeça. No bolso, outras 80 cápsulas. O inquérito ainda não foi concluído mas ficou comprovado que o jovem era um consumidor de publicações nazistas (Hitler em Taiúva, JB, 1/2). Onde as comprou? Quem as editou? Perguntem ao editor Ellwanger.

Há três anos, o Ministério da Educação surpreendeu-se com os resultados de uma pesquisa realizada no Colégio Militar de Porto Alegre, onde oito entre 84 alunos (10%) apontaram Adolf Hitler como o personagem histórico que mais admiravam (O Globo, 20-01-98, p. 5) Onde aprenderam tais noções de valor? Quem os alimentou com a caricatura da história? Perguntem ao editor gaúcho Ellwanger.

Há cerca de 10 dias o arcebispo de Porto Alegre, dom Dadeus Grings, fez uma incursão ”revisionista” no seu site oficial: ”Não há comprovação de que foram mortos 6 milhões de judeus…e se forem 6 milhões o que representam dentro do total de 22 milhões de mortos (na Segunda Guerra Mundial)?… nós, católicos, fomos as principais vítimas do Holocausto…” (Folha, 23-03, p. A-15). De onde tirou Sua Eminência essas cifras estapafúrdias? O editor Ellwanger sabe.

Em Nuremberg, a 15 de setembro de 1935, Hitler proclamou a legislação racista que colocou na sarjeta os judeus alemães sob o pretexto da ”pureza da raça”. Nuremberg redimiu-se 10 anos depois, em dezembro de 1945, quando abrigou o primeiro tribunal internacional para julgar os crimes contra a humanidade.

Na próxima quarta, talvez com os acordes rebeldes de Chopin nos ouvidos, as lembranças de Nuremberg estarão em Brasília.  

 

[ publicado no Jornal do Brasil ]

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