Perder a cabeça

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“… Enlutado preito à vida, arrevesada luta contra a morte…”

Depois dos aviões-bomba, dos carros-bomba e dos homens-bomba, os laboratórios do terrorismo inventaram nova e terrível forma de intimidar. A decapitação foi sempre usada no ocidente, junto com a fogueira, a forca e o garrote até que o Dr. Joseph Ignace Guillotin, médico de profissão e carbonário por convicção, sugeriu aos companheiros em 1791 uma forma mais rápida e humana de cortar cabeças. Estava inventada a guilhotina, usada na França até meados do século passado.

Acostumados às execuções “suaves” da era moderna, como a cadeira elétrica e as injeções letais (os nazistas alegavam que as câmaras de gás também eram indolores), a degola de reféns pelos terroristas islâmicos é um dado novo nesta Era do Fanatismo.

Perder a cabeça no sentido literal é hoje mais assustador do que perdê-la no sentido figurado. E, no entanto, no auge do racionalismo, hora estelar do conhecimento, as melhores cabeças trocam as idéias pelo delírio e enfrentam os afiados sabres da exaltação com as lâminas cegas da simplificação.

Neste panorama, a notícia mais perturbadora apareceu na sexta-feira, quase escondida, na forma de uma destas inocentes estatísticas através das quais o homem moderno imagina-se dono do saber. Publicado no vespertino israelense “Maariv”, distribuído por três agências respeitáveis (AP, EFE e Reuters) e reproduzido pelo “Estado de S. Paulo”, um relatório do Ministério da Defesa de Israel informava que no ano passado mais soldados israelenses mataram-se do que morreram em ação.

Suicidaram-se 43 soldados enquanto 30 pereceram em operações bélicas ou por outras causas. O ano passado não foi atípico – neste primeiro semestre de 2004 já ocorreram 15 casos de suicídio, a tenebrosa cifra está perto de repetir-se.

No absurdo das guerras, o absurdo maior do soldado que desiste de matar e abdica de viver. A dupla recusa é terrível, acachapante e, ao mesmo tempo, uma trombada com a esperança. Num mundo impregnado de rancores onde a regra é fechar os punhos, eles abriram mão da suprema ventura de viver. Enlutado preito à vida, arrevesada luta contra a morte.

Não se conhecem as razões, histórias e teor do desespero destes jovens caídos. Estatísticas não individuam, obrigatoriamente plurais. Como o fizeram e porque o fizeram são irrelevâncias. Mataram-se – é o que importa.

As máquinas de produzir verdades logo os apresentarão como vítimas da intolerância de Sharon ou como vítimas do ensandecimento palestino. Uma corte marcial poderia classificá-los como desertores. Pela lógica da guerra recusaram-se a combater. Em congressos e simpósios serão classificados como psicóticos, melancólicos, deprimidos. Hoje, agarrados à ciência, podemos diagnosticar todas as aflições. Mas não se consegue socorrer os aflitos.

Militares mas não militantes, nada combinaram, não pretendiam armar um movimento ou partido, não sonhavam com o paraíso nem temiam o inferno. Sozinhos, foram em frente contra um inimigo comum: jamais serão reconhecidos como heróis ou mártires.

A literatura pacifista gerada durante e depois da Primeira Guerra Mundial, talvez o último gemido humanista antes do mergulho na insanidade ideológica, não chegou a produzir algo tão aterrador quanto estes gestos isolados. E, no entanto, mesmo anônimos, pressentindo que seus gestos seriam soterrados na vala comum das páginas dos jornais, ousaram subscrever um manifesto mais tocante e mais arrasador do que os ditirambos assinados por celebridades.

Perderam a cabeça e acharam um meio de salvar outras.

[ por Alberto Dines – publicado n’O Estado de S.Paulo em 17|07|20044 ]

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