Arafat – o retrato da adolescência palestina

n99

A Marcha de Arafat

Como costumo ser precavido, após escrever o título e a primeira linha deste texto, quis salvá-lo em minha pasta de artigos, mas então o computador me advertiu de que já havia um arquivo com o título ‘Arafat’.

Fiquei surpreso, pois não lembrava de ter publicado nenhum artigo com o mero nome, algo que não é habitual em mim, já que geralmente não atribuo as razões dos acontecimentos históricos e sociais ao modo de ser deste ou daquele dirigente, mas busco sempre aquilo, subjacente no povo, que permite a um ou outro dirigente atuar de determinada maneira. Mas meu computador foi mais rápido do que eu, e logo me pus a procurar esse artigo chamado ‘Arafat’.

E assim foi que me deparei com dois rascunhos desse artigo que havia escrito nos últimos três anos e que acabou não sendo publicado. Mais além das análises sociológicas, naquela ocasião havia dado mais importância à peculiar personalidade de Arafat do que à de qualquer outro dirigente no tocante à situação no Oriente Médio.

Reli o artigo e creio que nele havia uma idéia acertada, que se pode adicionar a todo o mar de análises e explicações que foram escritas, e continuarão sendo, em torno da morte do líder palestino.

A primeira vez que vi a imagem de Arafat na TV foi no inverno de 1968, uns meses depois da Guerra dos Seis Dias. Estava na Jordânia, dentro de uma cova escura, sentado com o fuzil na mão, com muita segurança e falando em seu inglês macarrônico com o repórter estrangeiro que o entrevistava.

Ainda que meses atrás Israel tivesse derrotado os exércitos de três países árabes, ele se mostrava convencido não só da capacidade dos palestinos para acabar finalmente com o Estado de Israel, mas também de conseguir que todo o mundo árabe os apoiasse. Mesmo que já faça 36 anos desde então, essa confiança infantil se manteve até o dia de hoje.

Durante anos e anos o temos visto em múltiplas ocasiões e em situações distintas: passando militares em revista, abraçando líderes do mundo, falando ante as Nações Unidas, estreitando a mão e beijando presidentes dos Estados Unidos e Israel e, obviamente, também o vimos rodeado de seu povo exultante.

Mas o fato de aparecer com sua estranha indumentária militar e sua kefia, com a imagem da grande mesquita de Jerusalém ao fundo, determinam um componente básico que permaneceu fixo nesse homem e que fez que, consciente ou inconscientemente, se tenha mantido fiel a um princípio de que nunca conseguiu se libertar.

Muitas biografias foram escritas sobre Arafat, tanto por seus seguidores e detratores como por jornalistas estrangeiros que trataram de definir sua figura de forma objetiva.

Não pretendo criticar essas biografias que sem dúvida se baseiam em dados históricos e extraídos de seu entorno familiar. Só quero transmitir aos leitores minha impressão sobre um homem que nunca conheci pessoalmente, se bem que, como qualquer pessoa que vive no Oriente Médio, não tenha deixado de tentar chegar a compreendê-lo.

Para além da ideologia, da política e de tudo aquilo que um líder transmite a seu povo e ao mundo inteiro, minha impressão fundamental sobre Arafat se poderia resumir com esta frase: Arafat sempre irradiava uma espécie de infantilismo ou imaturidade adolescente que talvez tenha cativado e atraído seu povo. Esse infantilismo expressava algo essencial que existe nos próprios palestinos e talvez agora tenha chegado o momento de se libertarem dele.

Esse caráter infantil se manifestava não só em seu aspecto: baixa estatura, e forma de vestir diferente, mas também no modo com que se expressava.
Talvez tenhamos visto um exemplo claro desse infantilismo há pouco, numa ocasião em que um jornalista fez a ele uma pergunta bastante incômoda. Arafat então o repreendeu, dizendo: “Tenha cuidado, o senhor está falando com o general Arafat. Sou na realidade um general”. O fato de que o líder de um povo – algo muito mais importante do que ser general -ainda mais estando rodeado de vários generais palestinos (autênticos ou não), reclame para si num momento de raiva, não o qualificativo de líder ou revolucionário ou lutador pela liberdade de seu povo, mas precisamente o de general, quando se acha isolado e totalmente fracassado do ponto de vista militar, serve, junto a outras declarações parecidas, para ilustrar o caráter infantil de Arafat.

Seu empenho em ter o grau de general, com condecorações ridículas em sua jaqueta, é uma fantasia infantil. Esse infantilismo era também a expressão de algo profundo não só na sua personalidade, mas em todo o povo palestino.

E por isso Arafat pôde atuar como um atraente símbolo durante tantos anos, apesar de não contar na realidade com instrumentos governamentais que lhe servissem para estabelecer e manter sua liderança.

Mas de onde vem esse infantilismo? A que se deve? Para responder é necessário aludir ao processo histórico da consolidação do povo palestino.

O império turco dominou durante quatro séculos o mundo árabe.E as diferenças nacionais em toda aquela zona (sírios, iraquianos, jordanianos, libaneses, sauditas, etc..) eram bastante difusas, algo parecido ao que ocorreu no império dos Habsburgos.

No século XX, com o fim da Primeira Guerra Mundial, começou o despertar nacionalista dos distintos grupos nacionais inspirados pelo espírito independentista de outros povos na Europa em meados do século XIX.

E assim, após uma etapa relativamente curta de colonização britânica e francesa, começaram a se consolidar no Oriente Médio com rapidez e eficácia os distintos países árabes, cada um com seu território, suas fronteiras e instituições próprias: Egito, Síria, Iraque, Jordânia, Líbano, Kuwait, Sudão e após estes os países árabes do norte da África (Tunísia, Argélia, Marrocos e Líbia).

Mas o amadurecimento dos palestinos neste contexto natural foi truncado devido à entrada imprevista dos judeus em seu território nacional e o início da consolidação do Estado judeu em meio ao seu tecido vital.

No princípio, os palestinos estavam seguros de que seus irmãos adultos, os grandes e ricos países árabes, os iriam ajudar a expulsar o débil judeu errante que havia começado a se estabelecer na região.

O certo é que havia um desequilíbrio de forças entre judeus e árabes a favor do mundo árabe, que prometera acudir seu irmão menor, que se encontrava com um problema excepcionalmente grave.

Por isso, em vez de reunir todas suas forças para lutar contra os judeus, que começavam a se assentar cada vez mais em seu território, os palestinos confiaram em seus irmãos maiores e em suas promessas de defender seus direitos nacionais.

Mas, apesar da veemente retórica dos países árabes e de suas promessas, não se dispuseram no final das contas a esgotar suas forças numa luta contra o pequeno Estado sionista dos judeus sobreviventes do Holocausto que, com o mar às suas costas, haviam lutado com firmeza e êxito, e que ainda contavam com o apoio moral de grande parte do mundo ocidental, e inclusive do comunista.

Mas o jovem irmão palestino, decepcionado, exigiu então uma solução radical que supunha a expulsão total dos judeus da Palestina.

O processo de amadurecimento truncado, o infantilismo, as fantasias, a constante raiva pelos decepcionantes irmãos maiores, o desejo de alcançar a independência sem ter a capacidade de atuar de forma responsável e fazer certas concessões, tudo isso materializou-se perfeitamente na figura de Yasser Arafat, o eterno refugiado (mesmo que ele próprio tivesse nascido fora da Palestina), que, levado por uma frustração cada vez maior, começou a ameaçar os regimes árabes com suas provocações, e movido por seus sonhos irrealizáveis passou a atuar como um guerreiro revolucionário.

Pouco a pouco, como um adolescente abandonado e decepcionado que não conhece seus verdadeiros limites, negou-se a aceitar a dura realidade que o rodeava e começou a empregar o terrorismo suicida como parte de sua estratégia pelo povo palestino, pesem todos os horrores que tal terrorismo carreava sobre os demais, e especialmente sobre seu próprio povo.

Após ter estalado a cruenta Intifada promovida por Arafat à raiz do fracasso das negociações de Camp David, encontramo-nos no posto de controle de A-Ram, entre Ramalah e Jerusalém, um grupo de representantes da esquerda israelense e velhos intelectuais a favor da paz, com importantes intelectuais palestinos.

Apesar de que nós, os israelenses, criticávamos duramente a política de nosso governo, nenhum dos palestinos (entre eles catedráticos e escritores) se atreveu a dizer uma única palavra contra Arafat e sua política destrutiva.

Então, disse-lhes num tom de certo desafio: “Gostaria de me esconder de noite nos seus quartos e escutar o que realmente pensam sobre a forma de proceder de vosso líder. Não pode ser que não tenham nenhuma crítica a ele”.

Meus interlocutores palestinos se surpreenderam ante a idéia de que um israelense quisesse esconder-se em seus quartos para escutar e conhecer seus autênticos pensamentos, e me despacharam com um meio sorriso.

Naquele tempo, eu estava escrevendo meu romance “A noiva libertada”, e nele introduzi uma situação assim, na qual o protagonista, o professor e orientalista Rivlin, dorme numa cama de árabes-israelenses de uma aldeia da Galiléia e, através desse sono, aprende aspectos fundamentais dos árabes que não teria podido conhecer com suas pesquisas.

Agora tenho a esperança de que, após a morte de Arafat e uma vez terminado o período de luto, a sociedade palestina possa considerar com maturidade e bom senso os atos e fracassos de Arafat. Fazer uma crítica profunda e pública, a um líder problemático e infantil que tantas desgraças trouxe a seu povo em função de sua política, é uma condição importante para que se abra o caminho para uma liderança madura que, em vez de culpar o mundo todo o tempo, analise com realismo a realidade e saiba a qual sonho convém renunciar para conseguir verdadeiras vitórias que reduzam o sofrimento dos palestinos, que merecem afinal um período de paz e tranqüilidade.


A. B. YEHOSHUA, escritor israelense, é veterano ativista do Movimento PAZ AGORA, tendo participado da redação da Declaração Conjunta Israelense-Palestina em 2001, e dos Acordos de Genebra no final de 2003. 


[ publicado no Iton Gadol em 21/11/2004 e traduzido pelo PAZ AGORA|BR ]

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