ISRAEL X DIÁSPORA: O caso brasileiro analisado sob a luz das teorias de A. B. Yehoshua


Em 1984, A. B. Yehoshua, um dos maiores romancistas vivos de Israel, publicou uma coletânea de cinco artigos sobre sociedade israelense, sionismo e diáspora. O volume intitula-se “Pelo direito à normalidade” e dele gostaria de destacar dois ensaios: “Judeu, israelense, sionista: revisão de conceitos” e “A diáspora: uma solução neurótica”. Nesses ensaios, Yehoshua examina aspectos importantes da estrutura societária israelense, contrastando-os com os da diáspora. Neste texto, pretendo examinar sucintamente em que extensão as idéias de Yehoshua sobre o viver diaspórico coincidem com a realidade social e identitária de comunidades e indivíduos judeus no Brasil, ou dela divergem.

JUDEU X ISRAELENSE: ANOMALIA X NORMALIDADE?

Como é de conhecimento geral para aqueles que estão familiarizados com o judaísmo, mas não para o grande público, talvez não haja conceito mais intrincado do que o conceito de judeu, devido ao fato de que o termo passou gradativamente, ao longo de sua história, a significar indivíduos, comportamentos e backgrounds culturais muito díspares entre si e ainda pelo uso e conteúdo que cada um atribui a ele (1). A definição canônica e religiosa sobre quem deve ser considerado judeu (em relação à comunidade judaica) está contida na Halachá: “judeu é filho de mãe judia ou aquele que se converteu ao judaísmo segundo a Halachá.”

Neste ponto, antes do exame do conceito, deve-se indagar o porquê de uma definição deste tipo estar contida na Halachá. Provavelmente porque, à época de sua compilação, já havia alguma dúvida para os próprios judeus sobre quem poderia ser considerado judeu, devido à dispersão do povo por lugares distantes, em meio às mais variadas culturas.

Na verdade, mais do que traços culturais específicos, o que está por trás da definição haláchica é a manutenção da religião. O condicionamento à ascendência materna não é aleatório, o componente, em sua essência, não é racial. Se o fosse, mais provável seria o condicionamento à ascendência paterna, que se ajustaria melhor a uma sociedade patriarcal (vide o exemplo da definição de cigano: “filho de pai cigano”). No judaísmo, é a mãe quem cuida da educação religiosa do filho, de seu nascimento até que tenha idade para freqüentar o Cheder, ficando a seu encargo inculcar-lhe os valores básicos da religião.

Segundo Yehoshua, a definição haláchica clássica define um judeu sem atribuir-lhe um componente de conteúdo. Na verdade, não há razão plausível para que a Halachá repetisse em sua definição o óbvio. Pressupõe-se que aquele que é considerado judeu deva incorporar em sua conduta, seu componente de conteúdo, todo o corpo de preceitos, práticas e crenças contidos na própria Halachá. Por isso, a ênfase na segunda parte da definição haláchica: se se preconiza a conversão segundo as normas da Halachá, o que ainda hoje é um princípio do qual os ortodoxos não abrem mão, é porque estas mesmas normas exigem um componente de conteúdo e de conduta do converso que o defina enquanto judeu.

Apesar das pressões de grupos religiosos, a primeira formulação da Lei do Retorno, que teve vigência durante dez anos foi: “Judeu é aquele que declara sê-lo”. Pode-se relacionar esta “frouxidão” no conceito com a necessidade da imigração em massa para povoar o jovem Estado (orientação “demográfica”). Era mais importante povoar o Estado com uma população judia do que verificar em detalhes a judaicidade da mesma.

Dez anos depois, entrou em vigor a segunda formulação da Lei do Retorno: “Judeu é o filho de mãe judia ou convertido ao judaísmo”. Definição próxima à definição haláchica, admitindo, implicitamente, a conversão ao judaísmo por outros meios que não os preconizados pela Halachá. Não basta mais declarar-se judeu. O maior rigor da segunda formulação está relacionado às pressões crescentes de grupos ortodoxos e ultra-ortodoxos e à diminuição da necessidade da imigração maciça. No entanto, a relutância em se acrescentarem ao conceito de judeu presente na Lei do Retorno os termos “… convertido ao judaísmo segundo a Halachá” deve-se ao fato de que não era prudente abrir um precedente que pudesse dar mais fôlego às pretensões dos ortodoxos de que Israel fosse governado pela lei religiosa (teocracia). O governo israelense também não poderia, com essa mudança, negar legitimidade a outras formas de judaísmo, dentro do país e na diáspora.

Para o conceito de judeu presente na Lei do Retorno, A. B. Yehoshua propõe a seguinte reformulação: “Judeu é quem se auto-identifica como judeu”. A definição de Yehoshua busca, na verdade, esvaziar ao máximo o componente religioso da definição de judeu, deixando-o como um dos muitos componentes possíveis. Isso se dá para que o termo se adapte à realidade do mundo atual, onde a tônica é a laicização e também para não dar mais ensejo às pretensões de grupos fundamentalistas de que Israel se torne uma teocracia. Pondo a identificação como judeu nas mãos do próprio indivíduo, Yehoshua procura, também, acentuar o grau de compromisso e de responsabilidade assumido por esta decisão quanto ao judaísmo.

Yehoshua afirma que o que determina um judeu é sua identificação com o judaísmo, não necessariamente, ou principalmente, com a religião; embora não deixe claro que outros parâmetros de identificação seriam possíveis, a não ser a livre e espontânea vontade de auto-identificação judaica, não negando a influência da família, da sociedade e da cultura, mas asseverando que nada disso é suficiente para determinar a identificação.

Um judeu que abandona o judaísmo, por livre e espontânea vontade, deixa de sê-lo, como já está previsto na própria Halachá e como até mesmo judeus marxistas/trotskistas (DEUTSCHER, 1970, disperso) admitem. Um não-judeu que se auto-identifica como judeu, mesmo que não passe pela conversão formal religiosa, segundo a definição de Yehoshua, é um judeu legítimo. O autor nega que a identificação “de fora” (do anti-semita, por exemplo) (2) tenha qualquer peso na definição de um indivíduo como judeu. O que vale é sua liberdade de escolha, sua auto-identificação voluntária, o que, segundo ele, facilita de imediato a sensação de responsabilidade do judeu para com seu judaísmo.

O que não se menciona é que, determinantes ou não, imagens e definições “de fora” existem e podem ter influência na mudança ou criação de novos modelos, ao menos na “livre e espontânea” vontade de criá-los e/ou modificá-los. É o caso da imagem do novo judeu construída pela Haskalá, do novo hebreu dos princípios da nova colonização judaica na Palestina e do Movimento Canaanita das décadas de 30 e 40, todas criadas como uma tentativa de negação de estereótipos judaicos aceitos como modelo a ser rechaçado.

As imagens e definições “de fora” podem também criar a necessidade de impor a criação e/ou adaptação de modelos. É o caso do desejo dos colonos veteranos de Israel em absorver os judeus orientais em sua cultura hebréia/ocidental. É o caso também de judeus religiosos que não reconhecem judeus seculares e/ou assimilados como judeus, apesar de serem judeus
segundo a definição da Halachá, procurando impor a ortodoxia como única forma válida de judaísmo.

Para o autor, não existe algo como “destino judaico”, uma espécie de maldição que não permite aos judeus escapar do judaísmo, uma vez que o que sempre determinou a identidade judaica de um indivíduo foi uma escolha pessoal de auto-identificação. O que há é a realidade de cada povo e linhas nacionais de caráter que se foram moldando através da história, criando modelos que se repetem, mas que podem ser mudados e adaptados aos dados da realidade objetiva. Acrescenta ainda que o conceito de “judeu” é um conceito parcial, que só pode aparentar totalidade. Seria um conceito que se enquadra a situação existencial na diáspora, do que me ocuparei a partir daqui.

Diferenciando os termos judeu e israelense, o autor estabelece que: 1) judeu se vincula com dois fatos concretos: a) fé religiosa dos filhos de Israel e b) vida dos judeus na diáspora e 2) israelense é o judeu religioso ou secular que vive uma vida judia em sua totalidade, cujos signos distintivos são o país, a língua e o contexto social independente; embora não fique claro, por exemplo, o porquê de uma experiência religiosa na diáspora, em si mesma, abstraindo questões contextuais, deva ser considerada essencialmente diferente de uma vivência religiosa em Israel.

Assim, assevera que a vida judaica na diáspora era e é parcial, pois as questões de segurança, economia e política não dependiam de sua decisão. Hoje, aumentou consideravelmente a participação dos judeus da diáspora em todos os aspectos da vida dos lugares onde se estabelecem, mas sua atividade judaica, ainda segundo o autor, diminuiu na mesma medida, restringindo-se, no melhor dos casos, às práticas religiosas, pois os sistemas sociais de que fazem parte não são judaicos (educação, economia, defesa etc.).

Argumenta o ensaísta que, no caso de Israel, todos os aspectos da vida se converteram em atividades judaicas, ao menos na época de sua criação. Hoje em dia, há no país uma separação entre atividades judaicas e atividades israelenses. No primeiro grupo, estão relacionadas todas as atividades que têm a ver com a religião e com atividades relacionadas com os judeus da diáspora; no segundo, todas as atividades normais do dia a dia, da relação entre concidadãos. Sigamos, nos próximos parágrafos, a linha de raciocínio de A. B.

Apesar de ser um país judaico, de ter como língua a língua judaica original, um sistema educacional judaico, das relações sociais e dos objetivos serem judaicos, para muitos, o modo de vida israelense não é considerado como expressão completa e total do ser judeu. Parece que falta “algo mais”. Nesse sentido, Israel apenas reproduz a situação existencial da diáspora e reitera, paradoxalmente, a “anomalia” daquela; só que apresenta o efeito sem a causa, ou seja: os judeus de Israel não são uma minoria entre povos não-judeus.

Para alguns, este “algo mais” é a religião, que se cobre com o nome generalizante de “religião judaica” ou “judaísmo”. Este posicionamento pode estar encobrindo a verdadeira natureza do problema, que é o desejo de alguns de tornar o Estado de Israel em um estado religioso. Se se trata de religião, isso deve ser feito explicitamente e averiguar quais são os aspectos religiosos na substância israelense, pois o conceito de judaísmo não é igual ao conceito de judeu.

A mescla de religião com conceitos como “consciência judia” é enganosa, pois pode ser que haja israelenses que tenham a mais profunda consciência judia e, mesmo assim, não creiam em Deus. O engano se dá por, a se acreditar na boa fé dos que se enganam, dois fatos: a) memória histórica: durante séculos, a identidade judaica só poderia ser definida pela religião (vivendo na diáspora, território, língua e sociedade judia total não eram possíveis) e b) a existência de não-judeus no seio da sociedade israelense.

A presença de minorias não-judaicas no meio israelense não deve diminuir o israelismo dos mesmos, pois judeus na França não diminuem o francesismo dos franceses nem minorias não-iranianas no Irã diminuem a consciência iraniana. O autor toma a posição surpreendente de que quem deve sofrer a esquizofrenia da dupla identidade são as minorias, não os israelenses. Se o conflito da dupla identidade for grave, aqueles podem assimilar-se à identidade israelense ou abandonar o país, dirigindo-se para onde sua identidade específica seja compartilhada pela maioria. No caso da assimilação, esta não seria problemática, pois o assimilado estaria em meio a uma maioria judaica, não havendo o perigo de transportar consigo rasgos de identidade não-judaica que pudessem comprometer a identidade israelense da maioria.

Quanto mais o judeu se converte em israelense (tendo como base de sua identidade e cultura o território, a língua, realidade social judia integral e soberania absoluta), mais se aprofundam suas raízes no país; quanto mais se identifica como judeu, pela religião ou por qualquer outro componente parcial, maiores são as possibilidades que deixe o país. Vê-se por este posicionamento, então, que o conceito de judeu formulado por Yehoshua é apenas retórico, pois não busca solucionar a “anomalia” judaica na diáspora, mas apenas facilitar sua integração em Israel e tornar menores as barreiras para que um maior número de judeus possa fazer sua aliá, com a vantagem de que qualquer componente parcial que seja o formador de sua identidade judia será solapado pela realidade contextual israelense, tornando mais fácil, assim, sua “conversão” de judeu a israelense.

Com relação à parcialidade da vida judaica na diáspora, o autor, paradoxalmente, reforça que este caráter não diz respeito à sua consciência judia, que é íntegra e completa, mas sua realidade como judeu não o é, pois, segundo suas possibilidades e horizontes, que a si fixaram os próprios judeus e o judaísmo, estão limitados e se vêem bloqueados pelo sistema de relações sociais não-judaicos nos países em que vivem.

Aos que protestam contra a assimilação do judeu em israelense (aos modos de vida ocidental), Yehoshua assinala que ninguém se assimila no próprio país, somente se transforma. A identidade israelense é só uma transformação da identidade judaica, devido a fatores inerentes ao contexto (língua, território, sociedade judaica plena), o que reforça sua responsabilidade judaica no sentido de que aquilo que sucede com a sociedade israelense adquire um caráter “obrigante”, pois há fatos que os israelenses escolhem e promovem e fatos que lhes são impostos, mas todos são parte de sua história, pois neles intervêm. Todos os fatos do cotidiano do israelense estão expostos ao exame das crenças, valores, condutas e sonhos judaicos e quem se preocupa com a continuidade destes valores deve julgá-los na prática, e não na teoria, como ocorre na diáspora. Em conseqüência, tudo o que ocorre em Israel põe a prova o judaísmo, pois este é examinado pelo que faz na prática, não só na teoria.

Quanto aos judeus da diáspora, que são “mais livres” para decidirem “serem judeus ou não o serem mais”, a definição de Yehoshua só terá maior importância para aqueles que desejarem viver seu judaísmo em Israel, como cidadãos do país. É certo que “the jewish way of life” de Israel influi no pensamento e na vida da diáspora, podendo ser por esta elogiado ou criticado, aprovado ou reprovado, abençoado ou amaldiçoado, mas aí será uma questão muito mais “filosófico-existencial” do que no próprio Estado Judaico, onde todas as questões sociais e políticas e mesmo a vida cotidiana devem ser conduzidas por uma concepção de judaicidade.


Não é exagero, então, afirmar que, quando Yehoshua formula o novo conceito de judeu, está, na verdade, formulando primordialmente um conceito de israelense. A suposta parcialidade do viver judaico diaspórico não se aplicaria aqui, pois o componente específico de judaicidade de um indivíduo em Israel é uma questão de foro íntimo, determinante, decerto, em sua vida pública, mas não será jamais o único componente de judaicidade da sociedade como um todo, pois este não é parcial, e sim total. Israelense será, portanto, o judeu residente em Israel que respeite a pluralidade de concepções judaicas particulares e, ao mesmo tempo, tenha um compromisso claro e inequívoco com as aspirações e projetos nacionais, dirigidos por uma concepção de um viver judaico total.

Entende-se, portanto, algumas acusações feitas ao autor, como por exemplo MIRON (1998: 116), de que suas idéias representam um Sionismo anti-diáspora, pois é quase impossível separar conceitos como “normalidade” e “anomalia” de julgamentos de valor e de um certo sentimento de superioridade do “normal” para com o “anômalo”. Fica a impressão de que o que o autor na verdade diz, cotejando a anomalia da diáspora à normalidade pretendida para Israel, é que se ser israelense não é a única forma de ser judeu, ao menos é a melhor e mais completa, mais “normal”. Não é à-toa que em outros textos seus, Yehoshua aplica à Galut termos como solução neurótica (1984) e aos judeus caracteriza como seres andróginos (1999), diluindo em muito essa “androginia” quando se trata dos israelenses.

Nesse sentido, a par de uma orientação demográfica explícita (“quanto mais judeus em Israel, melhor”), pode-se ver seu conceito de sionista como uma porta aberta à “redenção” daqueles judeus que não estejam satisfeitos com seu viver “neurótico”, “andrógino” e “parcial”, na diáspora e que desejem à “normalidade sadia” do estado judaico. Serão bem-vindos, desde que se tornem israelenses, assumindo todos os traços culturais do país, as premissas pluralistas, segundo o novo conceito de judeu, do Estado Judaico e toda uma gama de deveres e direitos, a cujas relações e implicações se submetem de livre espontânea vontade.

Por este parâmetro, os judeus da diáspora não estão em posição tão melhor ou diferente da que se encontram os árabes israelenses, pois o que se pede aos dois grupos é que abandonem seu background cultural em prol de um israelismo total, sem o qual é melhor que os primeiros permaneçam na diáspora e os segundos deixem o país.

A DIÁSPORA BRASILEIRA

Esta parte do trabalho não tem a pretensão de analisar detidamente a diáspora brasileira segundo os parâmetros da teoria de Yehoshua sobre o viver diaspórico, mas sim o de apontar possíveis caminhos e posturas para uma pesquisa e análise mais acuradas e quantitativamente mais significativas da realidade judaica no Brasil. Portanto, deve-se desculpar o autor pela pouca extensão que dedica ao assunto, comparativamente á exposição minuciosa das idéias de Yehoshua.

Segundo o último censo brasileiro, existem atualmente no país cerca de cem mil judeus. De acordo com alguns demógrafos, como Sérgio DellaPergola, há uma certa distorção nesse número, devendo a comunidade judaica no Brasil contar com algo em torno de cento e cinqüenta mil indivíduos, em sua maioria concentrados nos grandes centros urbanos das regiões Sul e Sudeste. Embora ainda seja grande a carência de pesquisas sociológicas de campo sobre as comunidades judaicas no Brasil, com uma coleta vigorosa de dados e a interpretação dos mesmos (3), pode-se traçar algumas características gerais dos indivíduos e grupos judaico-brasileiros.

De maneira geral, pode-se dizer que os judeus estão bem integrados à sociedade brasileira, marcando presença em todos os ramos de atividades profissionais e em todas as esferas econômicas e educacionais; porém, com uma maior concentração na classe média. Vê-se bem tal integração judaica ao ambiente nacional, que, para muitos, representa uma assimilação, pelo fato de que problemas que atingem o todo da sociedade brasileira também os atingem, como a má distribuição de renda, a pobreza e o desemprego (MENORAH, 2001: pp. 6-14).

A despeito disso, a história das comunidades judaicas no Brasil sempre foi relativamente tranqüila, pois o anti-semitismo nunca fixou raízes entre nós. Mesmo no período da ditadura do Estado Novo, no qual a política getulista para com os judeus refugiados de guerra da Europa era a de uma restrição de sua entrada no país, como reflexo da política nacionalista e xenófoba de então, a atitude do todo da população brasileira em relação aos judeus continuou sendo a de sua aceitação no seio da sociedade. Nesse período, houve inclusive uma melhoria nos indicadores sócio-econômicos e educacionais da judiaria brasileira, com o aumento de seu acesso e ingresso nas universidades.

Atualmente, há grande preocupação das lideranças comunitárias sobre certas características sociológicas e identitárias que vêm se consolidando na diáspora brasileira, reflexo do que ocorre na diáspora em geral e da integração judaica ao Brasil, sobretudo nas concentrações urbanas, como o crescimento no número de casamentos exogâmicos (i.e., entre judeus e não-judeus), o declínio de práticas e usos tradicionais no seio da família e o esvaziamento da vida comunitária (decréscimo de freqüência ao clube e à sinagoga, por exemplo).

Sylvana HEMSI (1999: pp. 63-65) relata que em pesquisa para sua dissertação de mestrado em Estudos Judaicos pela USP (4) observou que todos os seus entrevistados, judeus paulistanos na faixa de 35 a 45 anos, pais de crianças de 5 a 13 anos, tinham a consciência de serem judeus e assim se consideravam, embora muitos não soubessem expressar, ou o expressavam de modo difuso e pessoal, como se dava tal identificação; que, via de regra, atém-se agora à repetição de práticas rituais, repassadas por seus pais, descurando da parte ética das mesmas.

Entretanto, quando se examinam a ação e o pensamento de indivíduos judeus que são figuras públicas na sociedade brasileira, como artistas, acadêmicos, escritores, jornalistas etc., não se consegue separar suas atitudes e declarações de seu judaísmo, embora também sejam vistos em seu componente de “brasilidade”. O que sugiro aqui é que, mais do que uma mistificação do caráter judaico desses sujeitos ou mais do que fruto de sua maior “visibilidade” no cenário cultural do país, seu componente de judaicidade é ressaltado, embora alguns se declarem indiferentes a ele, justamente pelos ideais de universalidade e de justiça social (já presente desde o período dos juizes e profetas) de que o judaísmo paulatinamente passou a se revestir desde a primeira dispersão, consolidando essas características com o advento do judaísmo reformista.

As preocupações com as liberdades políticas e civis de um Herzog, os trabalhos em prol da melhoria do nível educacional dos brasileiros empreendidos pelo ex-presidente da Academia Brasileira de Letras, Arnaldo Niskier, o ativismo político e ambiental de Carlos Mink, só para citar alguns exemplos, apontam para uma preocupação humanística e universal com o bem-estar do coletivo; basicamente imputado a seus contatos, em diferentes níveis e graus, com uma educação judaica liberal.

Voltando a considerar o que diz Yehoshua sobre a diáspora, relacionando seus arrazoados especificamente à situação identitária dos judeus brasileiros, creio que não há aqui, e talvez nem em outras comunidades diaspóricas, as alegadas neurose e parcialidade do viver. A identidade judaica brasileira está em mudança, como bem observa Anita BRUMER (1994), com os conflitos próprios da tentativa de adaptarem-se os valores tradicionais aos modos contemporâneos de vida e sociabilidade que o desenvolvimento econômico e tecnológico traz. Tais mudanças não são apenas características apenas das comunidades da diáspora, mas atingem também, e com implicações mais sérias, a sociedade israelense.

É questionável a alegada “totalidade” do viver judaico sabra frente à parcialidade diaspórica, uma vez que, quando se refere aos sonhos, aspirações e valores judaicos totais, que presidiriam todos os atos e pensamentos dos cidadãos israelenses, Yehoshua está, na verdade, se referindo aos valores dominantes do stablishment ashkenazita ocidentalizado. Ora, como se sabe, a sociedade de Israel é um mosaico de etnias (árabes, judeus sefarditas, judeus orientais e norte-africanos), correntes religiosas (muçulmanos, cristãos, judeus ortodoxos, conservadores e reformistas, judeus laicos) e modos específicos de vivenciar o judaísmo.

A identidade judaico-israelense também se encontra em processo de mudança, como de resto ocorre com as identidades nacionais específicas no mundo inteiro, com a participação cada vez maior desses grupos de status minoritário, mas que quantitativamente representam maioria, em todas as esferas de sua sociedade, portando consigo seus sonhos, valores e aspirações judaicos próprios.

Em textos e entrevistas posteriores, o próprio Yehoshua (BESSER, 1990: disperso) suaviza suas opiniões sobre a diáspora, reconhecendo sua importância para o estágio atual daquilo que se define como identidade israelense, e admite que mesmo os israelenses apresentam um componente de neurose e rigidez comportamental, advindas, respectivamente, do constante estado de conflito bélico com os árabes e da educação sionista, que por muito tempo foi a base ideológica do país. É de se perguntar, então, se as condições em que se deu a nova colonização judaica na Palestina e as relações dos israelenses com seus vizinhos árabes tivessem tomado outro rumo, não estaríamos hoje diante de uma identidade israelita, ou judaico-israelense, totalmente diferente da atual? Creio que sim.

Assim também ocorre em relação à diáspora brasileira e à diáspora em geral: as condições históricas, sócio-econômicas e culturais mudam, e com elas mudam e adaptam-se as identidades. E de todas as identidades étnicas, talvez a judaica tenha sido a que mais mudanças e adaptações sofreu ao longo de sua trajetória histórica e espacial, ao ponto de podermos conjecturar se seu aspecto plural e cambiante não seria justamente sua característica principal, em todos os tempos e em todos os lugares.


NOTAS

(1) – Assim, por exemplo, o conceito de judeu de um anti-semita não será o mesmo que o de um judeu religioso, que, por sua vez, não será o mesmo que o de um judeu laico etc.

(2) – DEUTSCHER (1970: 48), nesta questão, tem um posicionamento diferente do de Yehoshua, quando assevera que o maior “re-definidor” da identidade judaica foi Hitler e que Auschwitz foi o terrível berço da nova nação e da nova consciência judaica e, ainda, que o que vem recriando constantemente essa consciência judaica e injetando-lhe, sempre, nova vitalidade tem sido o hostil ambiente não-judeu que o cerca. (p. 46)

(3) – Algumas pesquisas desse tipo foram empreendidas por Anita Brumer, Helena Lewin e Sylvana Hemsi

(4) – HEMSI, Sylvana. Identidade judaica: um modelo paulistano liberal (dissertação de mestrado em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas, sob orientação da Professora Doutora Nancy Rozenchan). São Paulo: USP, 1997.

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Publicação Original: Palimpsesto – Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ – Volume 04 ANO 4 (2005) – ISSN 1809-3507

[republicado no site Judaísmo Humanista]

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