Azar Nafisi e a literatura como celebração da vida

“Eles são como estranhos íntimos. Senti-me completamente em casa, acho que porque eu vi Salman Rushdie aqui, assim como Isabel Allende e muitos outros amigos. Estranho, porque me sinto mais próximo destas pessoas do que gente com o senhor Ahmadinejad. Isto aqui [a Flip] se aproxima de uma República da Imaginação, um lugar de onde se volta para o mundo com uma melhor compreensão da nossa realidade.” 

A iraniana Azar Nafisi esteve no Brasil no começo de agosto, quando participou da Flip e da Bienal do Livro de São Paulo. E pôde, com todas as letras, expressar-se sobre o que pensa e como vê o seu país, algo que não poderia fazer lá, por conta do regime autoritário que comanda com mão de ferro as críticas e vozes que tentam se distanciar do discurso oficial. Os “estranhos íntimos” a que Azar se refere são os escritores israelense AB Yehoshua e brasileiro Moacyr Scliar. Scliar mediou a mesa entre os dois em Paraty, que, por conta de acontecimentos recentes como a condenação à morte por apedrejamento de Sakineh por adultério, tratou mais de temas políticos do que de literatura propriamente. De qualquer maneira, apesar de ter saído de Paraty depois de muito falar e comentar sobre a situação política do Irã e do Oriente Médio, Azar vai levar boas lembranças da experiência, como ela mesmo declarou acima. 

    Foto de Tomás Rangel

Mas a paixão pela literatura é o que move Azar, que atualmente é professora visitante de Estética, Cultura e Literatura do Foreign Policy Institute, da Universidade de Johns Hopkins, em Washington DC, nos EUA. A escritora e professora tornou-se conhecida por conta de seu primeiro romance, Lendo Lolita em Teerã (BestBolso, 2009. A primeira edição saiu pela Girafa, em 2004), traduzido para 32 línguas e vencedor de prêmios como Livro do Ano de Não Ficção do Booksense, em 2004, e do Frederic W. Ness. No livro, Azar aborda a vida de oito mulheres durante o tenso período da Revolução Islâmica, em 1979, que se reuniam para ler em conjunto romances proibidos de circular no país, como Orgulho e preconceito, de Jane Austen, Madame Bovary, de Gustave Flaubert e, claro, Lolita, o clássico de Vladimir Nabokov. 

Seu segundo livro, O que não contei (Record, 2010), ela escreve as memórias da família em meio à conturbada história iraniana no século XX.

Nesta entrevista exclusiva ao SaraivaConteúdo, Azar Nafisi fala sobre sua trajetória, seus livros, o que a levou a escrevê-los e qual a importância e o papel que a literatura pode ter. Comentou ainda o trabalha da quadrinista iraniana Marjanne Satrapi, que transforma sua graphic novel Persépolis(Companhia das Letras, 2007) em uma animação arrebatadora. “Acho que a maior arma contra a tirania é o humor.

A habilidade de rir do mundo e de si mesmo, nenhum tirano pode tolerar isso. E foi isso que amei no livro de Marjane, Persépolis. E como vocês sabem, o governo iraniano ficou muito irritado com ela, assim como comigo. [risos] Mas os iranianos têm uma visão diferente em relação ao livro de Marjane e ao meu livro também. E quanto mais o governo é contra os livros, mais o povo gosta deles.

Então por mim está tudo bem. Nenhum governo pode impedir que as pessoas pensem ou usem a imaginação”, disse Azar, que se engajou recentemente no caso de Sakineh, condenada à morte por apedrejamento. 

“As pessoas estão prestando a atenção em Sakineh agora porque viram o povo iraniano na internet, na televisão e tudo o mais, e viram que estas pessoas não são como o senhor Ahmadinejad diz que elas são. De repente, isso se tornou importante para o resto do mundo. O caso desta mulher se tornou o caso deles”, comenta. Apesar dos temas sérios e pesados que encara, e do turbulento momento pelo qual o seu país passa desde as eleições presidenciais de 2009, quando o governo de Ahmadinejad foi acusado de fraudar sua reeleição, Azar Nafisi é de uma simpatia extrema, bem humorada e espirituosa. Alguém que encontrou na literatura uma maneira de celebrar a vida. “E a literatura é também uma resistência contra o silêncio da morte. Quando meus pais morreram e eu deixei o Irã, o país que amava tanto, como eu poderia preencher a ausência? Como poderia criar as vozes que tinha perdido? Era através da escrita. Foi por isso que escrevi este segundo livro.” 

Confira a seguir a entrevista.

 

Os pais, a saída do Irã aos 13 anos

Azar Nafisi. Meus pais eram ativistas na política, mas eles não sabiam como ser políticos, e por isso os dois se meteram em confusão. E aprendi com eles a estar sempre metida em confusão. [risos] Eles me mandaram primeiro para a Inglaterra e depois fui para os Estados Unidos para estudar. E menciono nos meus dois livros que, desde os 13 anos, meu sonho era voltar ao Irã. Em 1979, terminei meu curso na universidade e dois dias depois peguei um avião de volta ao Irã. O Irã que deixei era muito diferente do Irã para o qual voltei. Esta foi talvez uma das experiências mais importantes da minha vida. Voltei no verão de 1979 e comecei a dar aulas na Universidade de Teerã. Eu sempre sonhei em estar lá. Se me dissessem: “Você vai para as melhores universidades do mundo”, não importava, eu queria estar na Universidade de Teerã. 

E era o tempo da Revolução [Islâmica], não era um bom momento para começar a dar aulas. [risos] Eles fecharam as universidades, obrigaram as mulheres a usarem véu. Eu, como muitas outras mulheres, não obedeci e acabamos expulsas. E não retornei à Universidade de Teerã até 1987. Voltei, de fato, mas dar aulas estava ficando cada vez mais difícil. Você não pode dar aulas e ficar constantemente pensando no que essas pessoas vão mandar você fazer. Por isso pedi demissão, mas eles não aceitaram a minha demissão. Eles têm que te expulsar, você não pode simplesmente pedir demissão. 

De qualquer forma, eu queria criar a minha turma ideal, onde os alunos estivessem livres para fazer, dizer e ler o que quisessem. A única condição para a esta aula era amar a literatura. E então comecei com sete das minhas alunas. 

 

Literatura como celebração da vida 

Azar Nafisi. Descobri duas coisas: uma é que as pessoas reagem à literatura porque ela cria um espaço para você, não importa de onde você venha, não precisa de passaporte. Seu passaporte é a paixão por conhecer outras pessoas. E creio que as pessoas reagiram ao papel que a literatura desempenha meus livros, contra a crueldade em que vivemos, a crueldade da vida política. E também acho que elas enxergaram uma visão diferente do Irã nos meus livros. Essa visão do país era sobretudo política. Você ouvia sobre o senhor Khomeini, o senhor Khamenei, agora sobre o senhor Ahmadinejad, mas não ouvia falar sobre as pessoas. Ninguém acreditava em como eram os jovens iranianos, e eles são como você, como qualquer jovem. 

Mencionei em meu segundo livro, O que eu não contei(Record, 2010), o que meu pai me contou sobre o Irã, um país muito antigo, que foi invadido tantas vezes. A única coisa que nos dá uma identidade como iranianos é a nossa poesia. Aprendi com ele a fazer da poesia iraniana o meu lar, que é o lugar mais seguro. Para mim, os grandes rebeldes do Irã sempre foram os poetas. Há 750 anos, [o poeta lírico e místico] Hafez criticava os “clérigos hipócritas, que bebem vinho em público e açoitam pessoas às escondidas”. 

A literatura é uma celebração da vida. Não apenas sobre política, mas sobre as relações humanas. E é também uma resistência contra o silêncio da morte. Quando meus pais morreram e eu deixei o Irã, o país que amava tanto, como eu poderia preencher a ausência? Como poderia criar as vozes que tinha perdido? Era através da escrita. Foi por isso que escrevi este segundo livro. 

 

Marjane Satrapi 

Azar Nafisi. Não conhecia a quadrinista iraniana Marjane Satrapi, mas li o livro dela e pensei “como ela é tão diferente de mim, mas escrevemos sobre as mesmas coisas”. E acho que a maior arma contra a tirania é o humor. A habilidade de rir do mundo e de si mesmo, nenhum tirano pode tolerar isso. E foi isso que amei no livro de Marjane, Persépolis (Companhia das Letras, 2007). E como vocês sabem, o governo iraniano ficou muito irritado com ela, assim como comigo. [risos] Mas os iranianos têm uma visão diferente em relação ao livro de Marjane e ao meu livro também. E quanto mais o governo é contra os livros, mais o povo gosta deles. Então por mim está tudo bem. Nenhum governo pode impedir que as pessoas pensem ou usem a imaginação. 

 

Sakineh Ashtia 

Há 30 anos pessoas têm sido apedrejadas no Irã e há 30 anos o povo iraniano vem protestando. Mas, no ano passado, todos esses grupos que protestavam se uniram. E, de repente, eles eclodiram no mundo. Disseram ao planeta: “Nós estamos aqui, vocês têm se esquecido de nós”. E acho que as pessoas estão prestando a atenção em Sakineh agora porque viram o povo iraniano na internet, na televisão e tudo o mais, e viram que estas pessoas não são como o senhor Ahmadinejad diz que elas são. De repente, isso se tornou importante para o resto do mundo. O caso desta mulher se tornou o caso deles. 

E eles também percebem que não faz parte da cultura do povo iraniano apedreja e açoitar pessoas. A cultura do povo iraniano é composta por seus poetas, suas músicas. E acho eu agora foi além da política. Agora é um assunto do povo. Como na África do Sul [em relação ao apartheid]. E quando se torna um assunto do povo, você sempre tem esperança. 

 

Literatura versus política 

A literatura pode ajudar quando não traz uma mensagem política. Porque, para escrever um romance, você precisa ter uma imaginação democrática. Quando escrevo, tenho que me colocar inclusive no lugar do meu inimigo. Tenho que encontrar a voz não apenas daqueles que amo, mas também daqueles que não amo. A literatura é sempre sobre a verdade. Isabel Allende, citando um provérbio judeu, disse: “O que é mais verdadeiro que a verdade? É a história”. E saber a verdade é uma chamada à ação. A partir do momento que você sabe, se não fizer nada sobre o que sabe, você também é culpado. E acho que ler é a melhor coisa do mundo. E acho que os leitores do mundo deveriam se unir! [risos]

[ por Bruno Dorigatti publicado pela Saraiva Conteúdo]

 

> Assista à entrevista exclusiva de Azar Nafisi ao SaraivaConteúdo

> ASSINE a petição pela liberdade de Sakineh Mohammadi Ashtiani  (já com 300.000 pessoas)

> Confira o site da escritora e professora iraniana

  

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