Antissemitas geniais


A Orquestra de Câmara de Israel surpreendeu ao anunciar que vai executar “Siegfried”, de Wagner, em Bayreuth. Como se sabe, o antissemita Wagner era o compositor favorito de Hitler, razão pela qual é proscrito em Israel. A decisão de uma orquestra israelense de tocá-lo, e justamente em Bayreuth, símbolo wagneriano amado pelo líder do Terceiro Reich, é, portanto, histórica.

Richard Wagner em 1871

Richard Wagner em 1871

“Sei que parte da visão de mundo de Wagner e a relação de Bayreuth com o regime nazista não podem ser justificadas nem apagadas”, disse Roberto Pasternostro, diretor musical da orquestra, à revista Der Spiegel. “Ainda assim, estou convencido de que é possível abordar o significado musical de Wagner em uma nova e sofisticada forma para a geração que amadurece, sem ignorar o fardo ou a responsabilidade histórica.”

Apesar da tentativa de Pasternostro de racionalizar o caso, a notícia foi muito mal digerida em Israel, diz a Spiegel. Muitos judeus consideram a obra de Wagner como uma espécie de trilha sonora do genocídio.

De fato, Wagner (1813-1883) manifestou explicitamente suas opiniões negativas sobre os judeus, sobretudo no ensaio “O Judaísmo na Música”, em que atacava de todas as formas a influência judaica na cultura alemã. “O judaísmo é a consciência diabólica da nossa moderna civilização”, escreveu.

Hitler, por sua vez, nunca escondeu a importância de Wagner para sua concepção de mundo. O líder nazista afirmou ter visto 30 ou 40 vezes a ópera “Tristão e Isolda” em seus anos de Viena (1909 a 1913), conforme o relato de William Shirer e Joachin Fest. Hitler viu também dezenas de vezes a ópera Rienzi, sobre um herói que lidera uma rebelião e posteriormente, vítima da incompreensão de seu tempo, acaba imolado pelo populacho. Para Frederik Spotts, estudioso da relação de Hitler com a arte, foi numa das sessões de Rienzi que Hitler anteviu o futuro de sua própria revolução – e orou.

Nada disso, porém, torna Wagner o precursor do nazismo, como seus detratores querem fazer crer. Seu pensamento racista não pode ser visto como excepcional no século 19, em que a “ciência racial” era aceita e louvada nos salões da inteligência europeia. Além disso, seu antissemitismo deve ser analisado no contexto de uma Europa geralmente antipática aos judeus – o próprio termo “antissemitismo” foi usado pela primeira vez em 1873, na Alemanha, para qualificar a rotineira aversão aos judeus. Partidos políticos no mundo germânico defendiam abertamente o antissemitismo, sem que isso causasse especial repulsa.

Caricatura de Wagner

Caricatura de Wagner na revista satírica vienense 'Humoristiche Blätter' (1873). Os traços exagerados refletem rumores de sua ascendência judaica.

Ademais, é curioso que somente Wagner seja proscrito em Israel, enquanto a obra de Carl Orff, que compôs “Carmina Burana” em 1937 sob endosso dos líderes nazistas, é executada livremente por lá. É fato que Orff não era antissemita empedernido como Wagner, mas outros gigantes da arte eram hostis aos judeus e nem por isso são malvistos pelos israelenses. Um bom exemplo é o escrito russo Fiódor Dostoiévski. O autor de “Irmãos Karamázovi” e “Crime e Castigo” não fazia caso de seu antissemitismo – os personagens judeus de seus romances são invariavelmente retratados como calhordas. Também neste caso, Dostoiévski não estava sozinho. Outros proeminentes escritores russos, como Pushkin, Chekhov e Pasternak, eram antissemitas.

Não se tem notícia de que Israel tenha proscrito esses formidáveis autores, assim como não proibiu Hegel, o filósofo alemão cujo maior legado é o método dialético e que teve influência decisiva em Marx. Pois Hegel, acerca dos judeus, disse que o “estado abjeto” em que eles se encontravam nada mais era do que “a conseqüência de seu destino original” – e a única saída para isso era, dialeticamente, o fim do povo judeu (não a eliminação física, claro, mas sua conversão). Kant, um dos pais da filosofia moderna, também defendia a “eutanásia” do judaísmo, assim como Schopenhauer.

Como se vê, a lista de antissemitas geniais entre os séculos 18 e 19 é extensa. Wagner, porém, que morreu antes de Hitler nascer e que não era mais hostil aos judeus do que a maioria de seus contemporâneos, é um dos poucos protagonistas da cultura ocidental vinculados ao pensamento antissemita daquela época a ainda pagar por isso em Israel – o que, em termos racionais, é muito difícil entender.


[ publicado no blog do autor http://blogs.estadao.com.br/marcos-guterman ]

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