A Paz é um valor judaico

Em uma das minhas visitas ao Capitólio, fui convidado para um debate  sobre o futuro do Oriente Médio com parlamentares norte-americanos. Após apresentar as minhas idéias, um dos senadores expressou sua grande surpresa por um rabino ortodoxo, sionista convicto, com a minha aparência, expressar idéias que sempre lhe haviam dito serem uma “traição ao judaísmo”.

A verdade é que eu não deveria ter ficado chocado com a sua reação. Nos últimos 40 anos, a Torá, o judaísmo, o sionismo e – às vezes – até o próprio Deus foram sequestrados, tanto em Israel como no resto do mundo, tanto por amigos como por adversários, por judeus religiosos e cristãos evangélicos. Eles foram sequestrados por uma ideologia extremista-messiânica, para avançar uma agenda política específica que, caso tenha sucesso, temo que irá marcar o fim do sonho sionista e do Estado judeu. Meu profundo desacordo com esta gente não é quanto à questão da Eretz Israel (a Terra de Israel), o amor à terra e a preocupação pelo seu futuro (embora eu nem sempre entenda por que esse amor seja só voltado para fronteiras e não para o meio-ambiente dentro delas, ou à dignidade dos seres humanos que lá vivem).  Como eles, eu tenho uma profunda ligação e afeição por todas as partes da terra. E, como eles, parte de mim irá se sentir pesarosa e  abatida no dia em que tivermos que abrir mão da Judéia e da Samária.

Meu desacordo fundamental é sobre a interpretação que fazem de “judaísmo”.  O judaísmo, como todas religiões, incorpora um equilíbrio muito delidado entre o particular e o universal. Quando somos fiéis a este equilíbrio, podemos contribuir para um mundo melhor. Mas, quando distorcemos esse equilíbrio, contribuímos para por em perigo o futuro e as esperanças da Humanidade.

Israel e Judá no tempo dos Profetas

Israel e Judá no tempo dos Profetas mapa

Creio que aqueles que criaram prioridades onde o amor à terra suplanta o amor ao Homem e à paz estão distorcendo a Torá. Acredito que os que ignoram tais conceitos da Torá, como a moralidade natural do Homem, como a crença em que Deus criou todo ser humano à sua imagem, e como o direito humano básico ao respeito e à dignidade que emana dessa crença, estão profanando o nome sagrado de Deus.

Acredito num judaísmo grande, amplo e inclusivo. Estou comprometido com os ensinamento do nosso grande mestre, o Rambam (Maimônides) que ensina que, quando se chega a um conflito de prioridades em que está em jogo a vida humana, “observarás minha leis e meus estatutos onde, o homem que age, deverá viver por eles (Levítico 18. 4) – viver e não morrer por eles, porque os estatutos da Torá não tratam de vingança, mas sim de compaixão, amor e paz no mundo”. Este não é um princípio abstrato dirigido a discursos festivos e reuniões inter-religiosas, mas uma orientação obrigatória, legal e moralmente, que vem dominando o pensamento judaico desde o recebimento da Torá no Monte Sinai.

Muias vezes desafiei meus colegas rabinos para que me mostrassem uma única fonte dos livros sagrados, a Bíblia, o Talmud, o Rambam, o Shulchan Aruch, ou a imensa literatura rabínica tradicional, que ordenasse que não se pode renunciar à terra para obter a paz. Nunca fizeram isso.

Pelo contrário, a Bíblia nos conta que o construtor do Primeiro Templo, o próprio rei Salomão, abriu mão de 20 cidades no norte de Israel para o rei Hiram de Zor. Fez isto como gesto de apreciação pelas árvores de cedro com que Hiram contribuiu para o templo.

Durante a construção do Segundo Templo, os imigrantes da Babilônia no período dos grandes líderes Ezra e Nehemia decidiram não incluir muitas cidades na nova soberania da terra. Isto foi feito de forma que a santidade dessa soberania não criasse um obstáculo à ajuda aos necessitados,  e ao recebimento no ano sabático de parte das colheitas doadas ao Templo. Vemos que a posse da terra foi posta de lado, não apenas para salvar vidas, mas mesmo por legítimas considerações sócio-econômicas.  E não houve nenhuma manifestação “patriótica” contra essa “traição” à terra.

Os profetas de Israel não atraíram muito apoio nos seus dias , mas inspiram ainda hoje e enriquecem a Humanidade, tanto a judeus quanto não-judeus. Eles sabiam como se erguer e falar a verdade aos poderosos e aos reis, E sobre o que falavam? Sobre fronteiras da terra? Ou sobre justiça e compaixão? Eles foram muito claros sobre as prioridades judaicas.

O direito do povo judeu à auto-determinação em sua antiga terra natal, a viver em fronteiras seguras e reconhecidas, é das causas mais justas e morais do nosso tempo.

Entretanto, ocupar e controlar a vida de milhões de palestinos na Judéia e Samária, e negar seus direitos a criar seu próprio Estado e um futuro de paz, lado-a-lado com o Estado de Israel, não é justo, não é moral – e não é judaísmo.

Pode haver um desacordo legítimo sobre como a paz será obtida e quem deve ser culpado por ter perdido oportunidades no passado para chegar a esta paz

Mas, esses desacordos não tem nada a ver com “judaísmo” ou “traição do judaísmo”. Aqueles em ambos os lados do debate que estão transformando o conflito num conflito existencial de religião e teologia, o estão fazendo porque sabem que, ao fazer isto, podem impedir qualquer compromisso necessário, ou qualquer solução possível para o problema. Pois, quem estaria disposto a um compromisso sobre a totalidade de Deus?

Chegamos a uma situação trágica em que o sonho messiânico da “grande paz” tornou-se a principal ameaça a acordos pragmáticos e necessários que, ao menos, tenham o potencial de proporcionar alguma paz e um futuro, que ambos os lados merecem e podem certamente salvar muitas vidas humanas preciosas.

Creio que, se a religião tem uma força redentora para a Humanidade, os líderes e professores religiosos precisam estar na linha de frente da luta para transformar  os nossos conflitos e trabalhar juntos pelo maior bem das nossas comunidades.

A boa notícia é que existe de fato um número crescente de pessoas determinadas e corajosas, incluindo líderes judeus, cristãos e muçulmanos, que também pensam assim – embora suas vozes possam ainda não ser ouvidas tão forte e destacadamente quanto as vozes dos extremistas totlitários. Há líderes que, como eu, sentirão uma profunda dor ao terem que abrir mão e renunciar a uma terra que acreditam ser sua.  Ainda assim, esta dor será sobrepujada pela alegria da esperança. A esperança de construirmos juntos um futuro, dominado não pelo medo e ódio, mas pelo otimismo e o compromisso com a paz em Jerusalém.

Todas as rezas judaicas terminam com a bela oração a Deus, “que Ele que faz a paz em Seu paraíso, nos ajude a fazer a paz na Terra”.  Quando oramos esta reza, damos três passos para trás, dizendo simbolicamente ao Todo Poderoso que não podemos esperar que Ele intervenha por nós, caso não estejamos dispostos a recuar e dar espaço para o “outro”.

Sim, esta pode ser uma mensagem ingênua e romântica”, mas não conheço nenhuma alternativa melhor do que um compromisso para fazer desta oração uma realidade.


Rabino Michael Merlchior acompanha o Papa João Paulo II em visita ao Muro das Lamentações em Jerusalém.

Rabino Michael Merlchior acompanha o Papa João Paulo II em visita ao Muro das Lamentações em Jerusalém.

 

O rabino Michael Melchior foi vice-ministro do Exterior de Israel e deputado do Knesset por dez anos. Atualmente é o rabino-chefe da Noruega e lidera uma sinagoga em Jerusalém. Escreveu este ensaio, como reflexão para o Hanuka para a APN (Americans ffor Peace Now).

 

 

[ traduzido pelo PAZ AGORA|BR ]

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