Cairo: ano zero

A derrubada de Hosni Mubarak produziu uma unanimidade instantânea em apoio ao povo egípcio. O consenso foi materialmente possível devido ao acompanhamento detalhado em tempo real da vigorosa pressão da população presente na Praça Tahir.  As transmissões televisivas e informações veiculadas pelas redes de comunicação social digitais e telefones celulares possibilitaram a formação de uma opinião crítica e realista dos fatos, tanto que numa tentativa desesperada do governo egípcio de evitar a sua queda a repressão foi justamente sobre os meios de comunicação em que recaiu sua atenção.

Tal a força material e simbólica dos acontecimentos que seria um suicídio político de qualquer governante, fosse do Hamas, do presidente Barack Obama ou dos dirigentes europeus, fosse ainda do presidente Mahmud Ahmadineja, e mesmo do governo israelense, se dissociarem do que era óbvio.  O quadro político interno do Egito modelou topicamente a vida internacional, pois todos se afastaram de um governo falido e se congratularam com o povo, cujo controle do consenso em apoio/tolerância aos governantes é uma questão sensivelmente volátil no mundo atual. Por vias eleitorais ou pela manutenção do poder pela força física, todos os governos dos países menos desenvolvidos (e pelos episódios que estamos presenciando, especialmente no Oriente Médio) enfrentam uma relação difícil com as suas populações em meio a uma débil recuperação econômica após a crise de 2008; a retomada do crescimento vem acompanhada por elevação dos preços dos alimentos básicos e da inflação dos preços de uma forma em geral. Mesmo na evoluída Europa Ocidental também presenciamos uma economia política da escassez, forjada em meio a ajustes fiscais severos com o objetivo de não permitir que os orçamentos impactem a gestão macroeconômica.


Mas, também é óbvio, a unanimidade internacional possuiu limitações. Ela foi composta por uma série de perspectivas conflitantes que se uniram na aprovação aos manifestantes devido ao fato destes terem atualizado radicalmente a agenda social do Médio Oriente. A derrubada de um ditador conspurcado pela demagogia típica do temário do “Choque de Civilizações” e a adoção de uma condição periférica na economia mundial ao longo de todo o seu longo governo recriou a mística da autolibertação dos povos, presente tanto no fim do bloco comunista, nas independências das metrópoles nos anos cinqüenta e sessenta, ou no fim de várias ditaduras da América Latina.


Fernando Kocher

Fernando Kocher


Podemos antever que o consenso produzido no cenário internacional tem, neste sentido, data para acabar (se é que já não acabou). Assistimos logo após a derrubada do ditador um alto comando militar assumir o controle do país e imediatamente iniciar uma tentativa de rápido enquadramento do movimento social impondo uma legalidade jurídica temporária, preparando o terreno para o quadro eleitoral. Tomando como “ponto zero” a Praça Tahir, intencionalmente os militares afrontaram intencionalmente a ação dos manifestantes remanescentes, que por iniciativa própria iniciavam a retirada de dejetos e limpeza de equipamentos coletivos. Tal situação já denota o acento legalista que os militares no poder pretendem imprimir prematuramente às vitorias alcançadas pelo movimento social (se possível) antes da consolidação de um novo governo eleito. O cancelamento da Constituição e o fechamento do parlamento representa que a revolta popular transformou-se em uma política pública concreta; esta poderá ou não honrar o martírio do povo egípcio, dependendo da construção de novas instituições políticas orientadas por uma democracia com qualidade.


A partir de agora as preferências ideológicas dos que aplaudiram o fim do governo de Mubarak voltam a um leito natural, afastando-se da unanime adesão ao “contra” o regime deposto. Encerrada esta primeira fase da revolução egípcia, o cenário internacional continuará o cortejo de divisões e a opinião pública mundial será recomposta com o a divisão de opiniões sobre o que poderia ser o destino adequado para o desfecho da revolução egípcia.


Isto porque a vitória (ou derrota) da revolução popular egípcia ainda não está determinada. Ela será conduzida pela ação futura dos setores sociais envolvidos, já levando em conta os ganhos e as perdas do primeira fase da luta política encerrada com a queda de Mubarak. Um mérito inescapável já foi, no entanto, alcançado: as manifestações desmontaram os esteriótipos de que o mundo árabe-muçulmano só produz oposição política anti-sistêmica, teocrática e pautada na linguagem do terrorismo e da violência. A musculatura exuberante da sociedade civil apresentada nas ruas do Cairo, Suez, Alexandria e demais cidades, não nos permite senão concluir que a luta social no Egito se nivelou ao que pode ser encontrado em muitas das sociedades ocidentais, principalmente as do Terceiro Mundo.


Após a derrubada de Hosni Mubarak o processo social e político do país mais importante do mundo árabe entra em uma nova fase. Todos os envolvidos irão (re)inventar suas agendas para um embate, que pode até não ser mais contundente do que as “jornadas” de janeiro-fevereiro de 2011. O que está em jogo no momento é a construção de um segundo movimento de uma “revolução”.  Concebemos assim o que está ocorrendo – apesar de possíveis correções conceituais que possam ser realizadas – , mas atribuindo esta generosa denominação ao esforço heróico do povo egípcio. A dinâmica dos fatos recentes no Egito marca o começo de um conjunto amplo de conjunturas que se entrelaçarão aparentemente de forma desconectada umas das outra, cujo resultado final do processo político só ocorrerá após muitos meses ou anos.


Daqui por diante teremos que considerar que cada segmento social fornecerá uma parcela de contribuição para o embate político, e o término do processo revolucionário não se saberá qual é senão quando uma nova “estabilidade” for criada. Os militares almejam preservar seu poder econômico em qualquer posição que venham a ocupar no novo regime. Eles detêm parte importante da economia e a manutenção desta riqueza social é o que efetivamente está em jogo para o estamento militar. O poder das armas em si não é questionado. O poder econômico dos militares do Egito não é caso único; podemos encontrar outros exemplos no Paquistão e na Turquia, e esta última fornece uma espécie de paradigma do papel que as Forças Armadas egípcias poderiam tomar como válido. Sob o manto do combate ao terrorismo, magnificado pela Doutrina Bush, o poder militar instrumentalizou a ameaça de que a Fraternidade Muçulmana poderia colocar o Egito na trilha de um governo teocrático, o que vários analistas e atores políticos nacionais e internacionais contestam. No plano regional, os Acordos de Camp David (1978) produzem um anteparo necessário para sustentar um poder militar egípcio forte o suficiente para ser respeitado… por um poder ainda mais forte, o de Israel. Desta forma, o “parasitismo” das Forças Armadas egípcias norteará a evolução dos acontecimentos futuros, tanto quanto já foram no passado.


Podemos registrar, no cenário imediato pós-Mubarak, tanto uma vitória como uma derrota dos militares egípcios. O movimento civil laico é quase uma declaração da morte do risco de que o poder teocrático se consolide no Egito, argumento fartamente utilizado pelos militares para amparar o regime de Mubarak e receber recursos dos Estados Unidos da América. A escusa de que a Fraternidade Muçulmana replicaria no Egito a mesma ditadura teocrática que existe no Irã se esvai, retirando do cenário político argumentos preciosos. Mas, por outro lado, a principal agenda política do poder militar, face à vitória inicial do movimento social, foi cumprida com sucesso: manteve a unidade interna das três armas, evitando qualquer defecção substancial de seus contingentes para o interior do movimento revolucionário. Além disto, por caminhos tortuosos, o poder militar não se confundiu na avaliação popular com o aparelho repressivo, exercido de forma impiedosa por 1,5 milhões de policiais.


Durante os episódios da Praça Tahir, especialmente quando o governo de Mubarack procurou utilizar da violência física (provocando uma batalha de pedras) e o achincalhamento para provocar  a perda de equilíbrio e o tom pacífico dos manifestantes, os soldados do exército não interviram, indicando que o seu papel seria apoiar o vencedor da contenda. Após o encerramento da crise, os militares estão se reaglutinando com o tecido social e terão como objetivo a reconstrução do seu papel enquanto gendarmes do Estado.


O empresariado, fraco politicamente e inorgânico, formado na dependência da ação estatal, não almeja transformações profundas, preferindo a manutenção o mais próxima possível do status quo anterior. Neste sentido não concorreram, como no modelo das revoluções ocidentais, para a formação de uma “revolução burguesa”. O crescimento econômico os beneficia, mas esconde a vulnerabilidade da iniciativa empresarial ao apetite das empresas pertencentes aos militares, por um lado, e do capital estrangeiro, do outro. Sem alternativas práticas ou ideológicas, seguem o curso dos acontecimentos de forma passiva.


As classes médias procuram uma solução econômica para o “seus” problemas: o empobrecimento e a falta de liberdade de expressão. Sua adesão a qualquer movimento ou segmento social – pendularmente ou fracionando-se internamente e apoiando mais de um lado –, é fundamental em qualquer processo político. Dos seus quadros saem os “profissionais” sociais (técnicos em informática e advogados, p. ex.) que são imprescindíveis para universalizar causas de outros segmentos sociais.  São “caixas de ressonância” do processo político mais geral. Exemplo desta ação é a atuação voluntariosa do prêmio Nobel da Paz, Mohammed el Baradei, que, procurando capitalizar seu prestígio internacional para o interior do movimento social, ofereceu-se para liderar o processo de transição sem possuir qualquer base política sólida.


Finalmente, tema lembrado apenas transversalmente pelo noticiário, realçaremos o papel que as classes trabalhadoras tiveram na condução de todo o processo político, o que levou aos acontecimentos da Praça Tahir. O único setor social que já estava “em movimento” contra a ditadura antes de janeiro de 2011 eram os trabalhadores. Ao longo dos dez anos anteriores ocorreram 3.300 greves, que já demonstravam que as demandas econômicas do movimento não poderiam ser realizadas sem uma mudança qualitativa na vida política do país. Mesmo durante os impasses trazidos com as tentativas de perpetuação no cargo de Hosni Mubarak foi o movimento operário que atuou decisivamente contra a  resistência do ditador, expandindo o movimento grevista.  Lembremos, de passagem, que a principal expressão pública do movimento revolucionário, o dos jovens, intitulou-se “Movimento 6 de Abril”, que é uma referência oriunda da classe operária. Naquela data, em 2008, mulheres e crianças se manifestaram contra a carestia e pelo estabelecimento de um salário-mínimo. Foram reprimidas com pedras pelas forças de segurança, tal como ocorreu em 25 de janeiro na Praça Tahir. De fato, o movimento da juventude em 2011 incorporou as lutas da classe trabalhadora ajudando a amalgamar a reivindicação econômica trabalhista em torno de uma ação política. A convocatória a uma greve geral não foi bem sucedida no “6 de abril”, mas preparou o movimento operário para participar e influenciar o processo político de forma mais ampla.


A ação da classe trabalhadora vai mais além: protagonizam há dez anos na ilegalidade um confronto com as instituições trabalhistas oficiais do Estado, imprimindo nesta ação um sentido “nacional” para o movimento operário. O forte controle estatal, instituído em 1957, está sendo rompido através de novas práticas de ação do movimento operário, tais como comitês de greve e operações padrão do processo produtivo. Mesmo as próprias greves tornaram-se instrumentos de questionamento da ordem política, já que não são conduzidas por sindicatos oficiais há dez anos. Desde 2009 diversas categorias de funcionários públicos iniciaram intensos movimentos grevistas, adensando as reivindicações do setor privado.


Assim, os trabalhadores tornam-se um eixo de – a partir de sua militância intrinsecamente economicista –, polarização do sistema político que os cerca, tornando-o roto. Neste movimento produziram uma tensão em favor da democratização da vida política.


A revolução egípcia de 2011 já pode ser considerada um marco na História política e social do Oriente Médio. Seu poder produziu a transformação de instituições ocidentais – o Estado Nacional –, que possuíam práticas de controle político de corte “oriental”, utilizando-se a acepção gramsciniana do termo. A revolução no mínimo já produziu um efeito positivo duradouro, tanto no Oriente Médio quanto no ocidente. Suas conseqüências se não forem sentidas de forma imediata se efetivarão nos próximos anos. Sua amplitude, no entanto, dependerá de atores comprometidos com a agenda oferecida pelos manifestantes da Praça Tahir, principalmente em seus momentos iniciais, quando o sucesso era incerto.



BERNARDO KOCHER é Professor do Departamento de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense. [ publicado na Revista Espaço Acadêmico ]


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