As primaveras de 2011

Primavera no Egito

Primavera no Egito

A “primavera israelense”, tal qual a “primavera árabe” que a antecedeu, surgiu – surpreendente e espontâneamente – do inconformismo popular com as deterioradas condições de vida.

O catalizador comum destas revoltas em massa foi a agilidade das novas ferramentas da internet e seu poder instantâneo de reunir milhões de pessoas – que normalmente não teriam contato nenhum – em torno de idéias.

Ainda ontem, a tendência das maiorias silenciosas era de aceitar, conformadamente, o status quo imposto por seus governos e os detentores do poder econômico e social. Uma andorinha só não faz primavera…

Hoje, a grande praça virtual da Internet pode, em minutos, somar milhões de reivindicações e protestos numa única e potente voz. Com facilidade, a revolta toma praças e ruas, ameaçando ordens engessadas há anos, ou mesmo séculos.

No mundo árabe dos séculos XX e XXI, via de regra, o domínio dos colonizadores ocidentais e otomanos, após as duas grandes guerras mundiais, foi cedido a próceres locais que mantém, desde então, suas populações subjugadas por estruturas autoritárias de poder, sejam na forma de monarquias, ou de ‘repúblicas’ igualmente governadas por dinastias – normalmente oriundas dos estamentos militares.

Os povos árabes tiveram pouca chance de contato com a democracia tal como a conhecemos – alternância de poder, liberdade de imprensa, proteção aos direitos humanos, igualdade de direitos para gêneros, etnias, religiões e minorias…

Tal situação foi realimentada pela Guerra Fria, quando Estados Unidos e URSS – os principais poderes mundiais (e outras potências colonialistas), sustentavam os regimes autoritários e ditaduras militares para garantir seus principais interesses estratégicos  na região – especialmente o petróleo. A força externa desses regimes, inabaláveis até poucos meses atrás, decorria desses interesses geopolíticos mundiais.

No plano interno, para conter seus povos frente à pobreza disseminada e o cerceamento das liberdades básicas, as lideranças árabes sempre recorreram a um inimigo comum: Israel. Enquistou-se na psique popular – desde a fundação do Estado judeu, que este era a principal razão do seu atraso e da sua miséria. Os governos não teriam nenhuma responsabilidade pelas péssimas condições de vida em seus países. O primeiro passo para a redenção seria derrotar a ‘entidade sionista’.

O discurso oficial de culpabilização de Israel, disseminado no mundo árabe, justificaria o maior fortalecimento dos militares, o desvio de recursos da economia para o armamento e o sufocamento dos anseios populares, num processo autoalimentante de opressão interna.

A figura de Israel se mantém no inconsciente coletivo árabe como bode expiatório. Mesmo após décadas de paz fria com o Egito, a imprensa e os meios acadêmicos egípcios ainda são majoritariamente opostos à “normalização” de relações com Israel.

A ocupação de terras palestinas – com a exposição das cenas e depoimentos das humilhações diárias que sofrem – só faz reforçar esse arraigado estereótipo dominante entre as massas árabes.

Com o advento da Internet, da TV via satélite e a facilidade de se comunicar com o mundo ocidental, a acomodação secular da massa árabe começou a dar lugar a uma mobilização extraordinária das novas gerações em torno de seus problemas em comum.

E agora?
E agora?

Vemos as avassaladoras revoltas no mundo árabe, que têm sido capazes de derrubar – em dias ou semanas – ditaduras que se mantinham inabaláveis há décadas. Promovidas em grande parte por jovens indignados pelas péssimas condições de vida e desemprego, sem lideranças e objetivos políticos bem definidos, as manifestações de massa – surpreendentemente – não incluiram num primeiro momento quaisquer demonstrações de hostilidade a Israel.

A grande questão é: qual o rumo que tomarão essas forças espontâneas da sociedade, agora que as ditaduras foram derrubadas?

Frente à desorganização das sociedades civis em décadas de poder absolutista, é difícil prever. Uma tendência evidente seria retomar a imagem onipresente do “inimigo nº 1 da nação árabe” como forma de aglutinar a massa em torno de jovens sem qualquer experiência política anterior. Outra é o possível avanço de grupos islâmicos fundamentalistas, que sempre tiveram uma estrutura organizada, ainda que na clandestinidade, valendo-se de mesquitas como ponto de reunião.

Construção desenfreada de colônias
Construção desenfreada de colônias

Por Outro Lado

Os governantes de Israel, com maior ou menor intensidade têm, desde a vitória da Guerra dos Seis Dias, estimulado a ocupação dos territórios então conquistados, assentando colonos judeus em terras conquistadas que deveriam constituir um futuro Estado Palestino soberano.

Desde a tomada do poder em Israel pelos partidos de direita – após o assassinato de Rabin e também depois do fracasso do plano Clinton – Ariel Sharon e Benjamin Netanyahu aceleraram a ocupação, com a construção de novas estradas exclusivas, infraestrutura e residências, altamente subsidiadas por dinheiro público.

Simultânea e silenciosamente, foi sendo desmantelada a estrutura de bem-estar social que havia feito de Israel – nos seus primeiros 20 anos de existência – uma das sociedades mais igualitárias do planeta, comparável aos países escandinavos.

Modelos econômicos neoliberais implantados por esses governos levaram praticamente à falência a rede de kibutzim, experiência revolucionária de sociedades socialistas nucleares. As grandes empresas de Israel – bancos, companhia aérea, construtoras, serviços públicos – que pertenciam ao Estado e ao sindicato geral (Histadrut) foram sendo privatizados. A Kupat Cholim, sistema modelar de saúde pública, que atendia com dignidade e equidade todos os segmentos da população, foi sucateada.

A socialdemocracia de Israel está acabando. Se, nos seus bons tempos, a maior parte da riqueza do país estava em mãos do Estado e dos sindicatos, revertendo igualitariamente para a sociedade, hoje a riqueza está concentrada nas mãos de algumas poucas famílias.

Enquanto os investimentos para o bem-estar social foram secando, a economia da ocupação só fez crescer. Constrói-se muito mais para os colonos do que para os cidadãos que moram dentro de Israel. Casas confortáveis nos territórios são oferecidas a preços baixíssimos e prestações a perder de vista.

O transporte público é muito mais barato lá do que no interior de Israel, apesar do custo da malha viária, que muitas vezes percorre quilômetros para levar a assentamentos com poucas dezenas de moradores. Há um incrível desvio de recursos da defesa para alocação de contingentes do exército para proteger punhados de colonos instalados no coração da Cisjordânia árabe. O moral dos soldados é corroído ao ter sua função de defesa ser desvirtuada para a opressão da população ocupada, cerceando sua liberdade.

Do lado israelense da Linha Verde, as estradas estão congestionadas, a construção de casas populares inexiste, a pobreza sobe e os jovens recém-formados não têm perspectivas de emprego ou de moradia decente. Construções luxuosas são erguidas para abrigar  uma pequena casta de milionários. A solução aos protestos em massa foi proposta por um ministro de direita: “Quer casa e trabalho? Vá morar na Cisjordânia!”.

O espectro das palavras de ordem “varrer a entidade sionista do mapa”, antes consensuais no mundo árabe-islâmico e agora ameaçadoramente repetidas ad nauseam pelo Irã e movimentos armados estabelecidos ao lado de Israel – Hamas a sudoeste e Hizbolá ao norte – tem sido habilmente manipulado pelo governo israelense para manter o foco das atenções na defesa militar e desviá-las da penúria popular e das consequências da ocupação ilegal dos territórios. Aproveita-se ao máximo o trauma atávico do povo judeu, que tem as marcas profundas do Holocausto nazista e da Inquisição.

Não ocorre ao governo Lieberman/Netanyahu estimular as conversações de paz com os palestinos e os vizinhos. Tal esforço poderia consolidar uma aliança estratégica contra o Irã, ameaça existencial tanto ao país quanto a vizinhos árabes e muçulmanos.

Ao contrário, esse governo sabota consistentemente qualquer negociação, e tem praticado uma política externa absurdamente autodestrutiva, que já afastou Egito e Turquia, seus aliados vitais na região. As décadas da ocupação mais longa da História recente são condenadas pelo virtual consenso da comunidade internacional.

Israel jamais esteve tão isolado, graças às políticas suicidas da atual coalizão.

300.000 Protestam em Tel Aviv
300.000 Protestam em Tel Aviv

É neste quadro que despontou a impressionante “primavera israelense”.

Como na “primavera árabe”, são centenas de milhares de jovens, conectados por modernos instrumentos de comunicação virtual e redes sociais, que vão às ruas reclamar justiça social. Estão enxergando a diferença entre o Israel dos seus pais – que oferecia oportunidades para todos – e o país em que vivem agora. E se recusam a aceitar as ameaças do “inimigo árabe/muçulmano” como principal responsável pelo seu empobrecimento.

Querem mais democracia, igualdade e justiça. E começam a descobrir que os recursos públicos necessários para custear o bem-estar social estão sendo canalizados para a ocupação dos territórios.

A continuidade da ocupação não só ameaça inviabilizar a criação de um Estado Palestino soberano. Põe em cheque a própria existência de Israel enquanto Estado judeu e democrático, ao incorporar um território que tornaria a população palestina praticamente equivalente à de judeus.

As primaveras árabes e a israelense têm muitas similaridades, inclusive a imprevisibilidade de seus rumos, que podem conduzir à anarquia e a violência.

Mas Netanyahu tem nas mãos os instrumentos para utilizar este momento histórico de crise em prol da paz e da prosperidade de todos os povos da região.

Se Israel  – AGORA – sustar a ocupação dos terrítórios, apoiar a criação de um Estado Palestino e batalhar por uma cooperação com os vizinhos, as “primaveras” do Oriente Médio poderão vir a desmistificar o discurso de culpabilização recíproca e trazer uma nova era de cooperação, progresso e justiça ao Oriente Médio.

 

Moisés Storch é coordenador dos Amigos Brasileiros do PAZ AGORA

 

[ Publicado em 15/11/11 no Boletim da ASA nº 133 de nov-dez de 2011 ]

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