A imaginação contra o fanatismo – entrevista

 Entrevista de Amós Oz por Cassiano Elek Machado

No meio do deserto existe um oásis. Nele não há árvores frondosas, odaliscas, lagos frescos e frutas grávidas do melhor sumo. No meio do Deserto de Neguev, em Israel, existe um deserto chamado Amós Oz e nele tudo o que podemos beber são algumas talagadas de esperança, liberdade, imaginação e paz, sem nada do pieguismo que muitas vezes acompanha tais conceitos.

O romancista, ensaísta e ativista israelense e toda a sua obra enfiam o corpo até o pescoço no “humano, demasiado humano”, para emprestar a expressão de Nietzsche. Foi na terra do filósofo alemão o mago Oz.

 

Folha – O sr. diz que a imaginação é um bom remédio para o fanatismo. O sr. não considera os grandes fanáticos contemporâneos, como os arquitetos de 11 de Setembro, um bocado imaginativos?

Amós Oz -Imaginação, para mim, é, antes de mais nada, imaginar o outro. Um motorista sem nenhuma imaginação é pior motorista do que um com imaginação, assim como amantes, ou maridos com imaginação estão sempre na frente dos que não imaginam.

Pessoas sem imaginação são menos capazes de se dirigir ao outro. Nesse sentido, nenhum fanático é imaginativo.

Os fanáticos sempre partem do princípio de que o outro é corrupto, desorientado ou mau. Acho difícil pensar que os fanáticos por trás de 11 de Setembro tentaram alcançar algo para seu povo ou sua causa lançando aqueles ataques.

Folha – O sr. fala que se tivesse a receita de como fornecer pílulas de imaginação e humor não seria candidato ao Nobel de Literatura, mas ao de Medicina. O poeta francês Paul Éluard distribuiu “pílulas” de imaginação e esperança ao fazer com que seu poema “Liberdade” fosse jogado de aviões ingleses sobre a França ocupada da Segunda Guerra Mundial. O sr. acha que algo do gênero teria resultados no conflito de Israel e Palestina?

Oz -É exatamente isso que eu e meus colegas escritores estamos tentando fazer hoje em dia. Mas não há meio de medir se isso está influenciando as pessoas. Mesmo que soubesse que não funcionaria eu estaria mandando meus aviõezinhos de papel, para parafrasear Paul Éluard. Esta é a única coisa que eu sei fazer.

Folha – O sr. afirma em um dos ensaios que nunca escreveu alguma obra de ficção para se manifestar politicamente. O sr. acha possível imaginar sua literatura sem as disputas político- religiosas em torno de Israel?

Oz –
Meus romances são cheios de política, mas não de manifestos políticos. Eu muitas vezes crio personagens com convicções políticas totalmente diferentes das minhas, e o faço com simpatia. Eu chamaria meus romances de metapolíticos, não de políticos. São metapolíticos por promover complexidade, ambivalência, ironia, ceticismo e, espero, humor.

Folha – O humor é a palavra mais importante no vocabulário dos conceitos do sr., não?

Oz – Não sou um homem religioso, não acredito na chegada de um messias. Mas acho que se o redentor viesse ele ou ela viria gargalhando, contando piadas e nos ensinando como rir de nós mesmos. No momento em que aprendermos a rir de nós estaremos imunes ao fanatismo.

Folha – No livro o sr. conta que em sua infância aprendeu como primeiras palavras em inglês a expressão “British, Go Home!” e que chegou a jogar pedras nos soldados ingleses que ocupavam Israel. Esse passado não faz com que o sr. compreenda as crianças palestinas que jogam pedras nos israelenses?

Oz – É claro que consigo me identificar com os jogadores de pedras palestinos. Eu posso comparar eles comigo e posso me lembrar de mim mesmo. A diferença, claro, não é entre mim e esses garotos, mas entre as pessoas que mandam neles, entre as ideologias. Enquanto eu queria que os ingleses voltassem para seus países, a Inglaterra, os fanáticos islâmicos gostariam que eu saísse de meu país – e que fosse diretamente ao inferno. Eu não tenho uma Inglaterra para onde me dirigir. Essa é a diferença-chave. E é algo que os garotos que arremessam pedras não entendem.

Folha – O sr. afirma claramente que a Europa foi a responsável por banir os judeus de seu território e por igualmente barrar a permanência dos árabes. Se os europeus resolvessem saldar essa dívida que o sr. aponta como eles poderiam fazê-lo?

Oz –
Os europeus estão em uma posição excelente para ajudarem os dois lados. Eles agem como velhos professores dos tempos vitorianos, dizendo para os dois lados “vocês não têm vergonha do comportamento de vocês?”. Isso é contraproducente. Eles poderiam ajudar os dois lados diretamente.

A Europa poderia iniciar um plano de reacomodar os refugiados palestinos de 1948 em um futuro estado palestino. É claro que teria de ser uma empreitada internacional, mas a Europa deveria tomar a liderança. Poderia começar um Plano Marshall europeu para o Oriente Médio, do mesmo modo como os Estados Unidos fizeram com a Europa depois da guerra.

Eles poderiam ainda dar a Israel as garantias de que assim que eles saíssem dos territórios ocupados e ficassem fragilizados teriam a ajuda européia. Se fizessem isso estariam dando uma contribuição construtiva para a causa da paz. Não é preciso mais escolher ser pró-Israel ou pró-Palestina, é preciso escolher ser pró-paz.

Folha – O sr. foi um dos fundadores do movimento pacificista de esquerda israelense, que defendeu no país a criação de um Estado palestino. Como tal, o sr. não se sente desiludido ao ver que sua luta está desaguando?

Oz –
Raiva, sim; frustração, sim; desilusão, não. No final das contas ainda é um país muito pequeno, do tamanho da Sicília ou da Dinamarca, com 6 milhões de judeus, 3,5 milhões de palestinos. Eles não podem ser uma família feliz. Suas casas precisam ser divididas em dois apartamentos.

Não posso mudar minha opinião e defender que neste caso deveríamos pegar nossas malas e mudarmos para a Escandinávia, ou fazermos os palestinos irem para a Escandinávia. Temos de ser vizinhos e dividir a casa em dois apartamentos, o que pode demorar um pouco por termos líderes horrorosos. Sharon e Arafat são uma desgraça. Eu adoraria ver os dois andando de mãos dadas, em um pôr- do-sol, com as costas viradas para a câmera, como em uma má comédia americana.

Folha – Como é a experiência de escrever ficção, em especial histórias de amor, em um ambiente de guerra?

Oz – É a condição humana básica, em todo lugar. Não é diferente do que escrever poesia na prisão, não é diferente do que escrever um romance tendo câncer. É a mesma condição humana de todos nós.

Vivemos todos, não apenas palestinos e israelenses, na encosta de um vulcão em atividade. E morando nessa encosta de um vulcão prestes a explodir temos de continuar pagando os impostos, continuar olhando a mulher bonita do apartamento ao lado, temos de continuar com fantasias sobre sucesso, amor e tudo o mais.

A vida continua sempre, seja lá no meio de uma guerra ou não. Escrever uma história de amor em um estado de guerra não é diferente do que fazê-la em um cenário de extrema pobreza, como vocês têm aí em São Paulo. Vai continuar sendo uma história de amor.

Folha – Das más notícias que o sr. leu esses dias no jornal sobre o conflito Israel-Palestina o que chamou mais atenção do sr.?

Oz –
Acho que Israel deveria tirar imediatamente seus acampamentos e suas tropas de Gaza. Ao mesmo tempo não tenho um pingo de admiração pelos fanáticos islâmicos. É uma batalha entre errados e errados.

Nós, israelenses, não deveríamos estar em Gaza, mas quando sairmos de lá não haverá nenhum paraíso. Encaro isso com muita sobriedade. Também queria aproveitar para dizer as boas notícias que tenho lido no jornal. As boas novas são que a vasta maioria dos judeus israelenses e a vasta maioria dos árabes palestinos estão apoiando em pesquisas de opinião a divisão do território que ocupam em dois Estados.

Isso significa que o paciente está, a contragosto, pronto para a cirurgia, mas os cirurgiões são covardes.

[ Publicado na Folha de São Paulo em 24/05/2011 ]

 

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