"Ver: Amor" – Vertigem de Emoções Acima da Geopolítica

Vertigem de Emoções Acima da Geopolítica

 por Heliete Vaitsman


O escritor e pintor polonês Bruno Schulz, morto durante a Segunda Guerra, sonhava que a humanidade chegaria um dia à Era do Gênio, de criatividade similar à existente no Território da Imaturidade de Ernesto Sábato, que nele instalaria países como a Polônia, a Rússia, a Noruega e a Espanha. Em países assim, segundo Sábato, a desobediência às amarras do racionalismo pôde produzir obras extremadas, até mesmo alucinadas, como as de Cervantes, Dostoievsky e Gombrowicz. O extremado e introspectivo Schulz, personagem surreal do livro Ver:Amor (Companhia das Letras), do premiado ficcionista e ensaísta israelense David Grossman, com certeza caberia nessa lista. E nela também caberia Israel, desmesurado pequeno país onde o encontro / desencontro entre Oriente e Ocidente é capaz de gerar obras épicas como essa, cujo tema central é, ou parece ser, à primeira vista, o Holocausto.

Mas será que alguém ainda tem algo de original a dizer sobre o Holocausto? A dificuldade da classificação talvez seja responsável pelo atraso com que essa obra foi traduzida no Brasil. Ver: Amorfoi lançado em 1989, quando Grossman tinha 35 anos e já um total domínio de seu ofício (ele é considerado um dos três expoentes da literatura contemporânea israelense, ao lado de Amós Oz e A.B. Yeoshua). Não é exagero: um crítico do porte do norte-americano Edmund White saudou o livro, ao ser lançada a tradução para o inglês, como digno sucessor de obras contemporâneas quase míticas, como O Tambor, de Gunter Grass, O Som e a Fúria, de Faulkner, e Cem Anos de Solidão, de Garcia Márquez.

Pacifista, militante do movimento PAZ AGORA, filho de pai austríaco e mãe nascida em Jerusalém, Grossman perdeu um filho durante a invasão do Líbano pelas tropas israelenses, o que não mudou sua postura favorável à criação de um Estado palestino e às negociações de paz. Ele separa o militante do escritor e, nas entrevistas que dá, costuma repudiar o peso que a crítica ocidental confere à geopolítica ao lidar com autores do Oriente Médio. Nega que sua obra seja sempre uma metáfora para a situação política da região. Tudo o que um escritor quer, afirma, é contar uma boa história, sem clichês ideológicos ou literários que jamais dão conta da complexidade da vida e da História.

Em Ver: Amor, embora experimente com a linguagem, Grossman não o faz por exibição formal. O que ele faz é usar todas as possibilidades para esquadrinhar o avesso do avesso de trajetórias individuais marcadas pela dor e a abjeção.Um caminho tortuoso,  pontilhado de humanismo radical e imaginação delirante, e sem sinais de final feliz. Tudo começa com o menino Momik, israelense filho de sobreviventes do Holocausto; e prossegue com seu tio-avô e escritor infanto-juvenil Anshel Vasserman-Sherazade (o próprio Grossman escreveu para crianças); o nazista Neigel, a quem o autor ousa dar sentimentos não estereotipados; e, retirado da vida real, Bruno Schulz, cujo final de vida é recriado de forma surrealista (e mais digna que sua verdadeira morte) a partir da visão do quadro O grito, de Munch.

A mistura de fantasia e realidade se desdobra, como numa sinfonia, em três movimentos e um final, entre personagens que deliram enquanto passam por sucessivas camadas de padecimentos. A primeira parte do livro, realista, apresenta o mundo pelo olhar de Momik, que definha por guardar sua comida para alimentar pequenos animais que mantém prisioneiros no porão do prédio onde vive com os pais, acreditando que num deles se oculta, literalmente, a Besta nazista de que os adultos tanto falam e que ele planeja destruir. Onipotente e à beira da psicose, o menino é uma vítima indireta do Holocausto, traumatizado pelo não-dito sobre um mundo sombrio que introjetou mas que nunca verá – um Lá de neve e florestas, de números tatuados nos braços e cães ferozes, de famílias enormes que se reduzem a cinzas.  Só a vertigem da escrita o salvará da loucura.

É mais tarde, como adulto em crise de identidade, que Momik, alter-ego do escritor, invoca o espírito de Bruno Schulz (hoje cult na Europa, cuja obra curta é comparada por muitos à de Kafka). A onírica viagem de Schulz, transformado em peixe, pelos oceanos do mundo,   dialogando com o mar – a quem se dirige com o pronome ela, fêmea oscilante entre a calmaria e a fúria – é uma homenagem de Grossman a um de seus autores favoritos.

Ele também especula a respeito do famoso O Messias, manuscrito de Schulz extraviado durante a Segunda Guerra (e que já foi motivo de relatos dos escritores norte-americanos Cynthia Ozick e Philip Roth), e reflete sobre o trabalho do escritor, que se desnuda em público com as inevitáveis repetições e obsessões que acompanham o ser humano – as palavras, diz a certa altura, são “apenas pobres trechos de histórias primitivas eternas: que nós todos construímos a nossa casa, a exemplo dos bárbaros, de fragmentos de estátuas e de imagens de antigos deuses, de migalhas de mitologias poderosas”. 


Adorno não tinha razão, há poesia depois de Auschwitz, sustenta Grossman. Simplesmente porque existe vida, é temporária a derrota da língua alemã aviltada pelos carrascos, indica o capítulo dedicado a Vasserman, anti-herói maltrapilho e falastrão que escapa fantasticamente vivo das câmaras de gás e dos tiros à queima-roupa e implora pela morte liberadora, em cenas que seriam pícaras se o cenário não fosse a montanha de ossos e os odores letais do campo de extermínio. Transformado em limpador de latrinas, Vassernan estabelece com o Obersturmbannführer (comandante do campo) Neigel uma relação de recíproca vigilância, com o SS passando a depender das histórias que o judeu lhe narra toda noite. Histórias fantásticas, entre elas a do simbólico bebê que nasce, cresce e envelhece em 24 horas. Emocionado por ter, depois de tantos anos de silêncio, um ouvinte atento (ainda que este seja o assassino da sua família) o prisioneiro é uma Sherazade ao contrário, que inutilmente busca a morte depois de cada relato.

A narrativa desemboca num estranho Glossário sobre o Holocausto para jovens, que Momik/Grossman sonhara escrever, sobrepondo as vozes de torturadores e torturados. Dois verbetes ficam em branco – sob Compaixão, informa-se: ver Piedade. Sob Piedade, informa-se: ver Compaixão. Mas nada há para ler ali depois dos dois pontos. Já Amor e Sexo são vocábulos intercambiáveis que o delirante prisioneiro, ao contrário do infeliz carcereiro, ainda pode dizer. Apesar do horror, o preso mantém a liberdade de pensamento que lhe permitem nomear o que merece ser nomeado e relatar o que deve ser relatado – distinção do ser humano.


                   A jornalista HELIETE VAITSMAN é ativista dos Amigos Brasileiros do PAZ AGORA

 Livro.

‘VER: AMOR’

ISBN: 9788535910346 – Editora: CIA DAS LETRAS

Número de páginas: 536 – Edição: 2007

 

AUTOR

O israelense David Grossman, veterano ativista do PAZ AGORA,  nasceu em 1954, em Jerusalém, onde estudou filosofia e teatro antes de começar uma longa carreira como repórter da Rádio Israel. Jornalista respeitado em seu país e no exterior por sua cobertura do conflito entre judeus e palestinos (‘O vento amarelo’ e ‘Dormindo na corda-bamba’), Grossman é ainda o autor premiado e mundialmente traduzido de vários livros infanto-juvenis e de sete romances que vão da crônica da Jerusalém contemporânea em ‘Alguém para correr comigo’ às sutilezas amorosas e formais de ‘Ver: Amor’.

 

 

 

SINOPSE


Na década de 1950, em Israel, o menino Momik, filho de judeus sobreviventes do Leste Europeu, interpreta à sua maneira os silêncios e fragmentos de conversas dos adultos sobre o que viveram na terra de lá (a Europa dominada por Hitler). Convencido de que a besta nazista é, literalmente, um monstro horrendo, resolve atraí-la a um galpão no fundo de sua casa para poder destruí-la, com a ajuda do avô Anshel Wasserman, que aparentemente ficou louco num campo de concentração. Já adulto, e agora romancista, Momik recria literariamente a história de Bruno Schulz (1892-1942), escritor polonês morto por um soldado nazista no gueto de Drohobycz. Na variante inventada por Momik, porém, Schulz foge para Dantzig e se atira no mar do Norte, em cujas profundezas vive uma aventura fantástica e alegórica. Outra história dentro da história é a do avô Wasserman, ele próprio autor, na década de 1910. Em 1943, prisioneiro de um campo de concentração, Wasserman se transforma numa espécie de Sherazade às avessas – ao descobrir que é invulnerável às inúmeras formas de assassinato praticadas pelos nazistas, ele conta a cada noite novas histórias ao comandante do campo, e em troca este tenta matá-lo. Narrado em várias vozes, fundindo gêneros e estilos, Ver – amor cobre de modo não linear praticamente todo o século XX, tendo como núcleo a experiência indizível do Holocausto.


TRECHO


“A respeito do quarto branco ela me disse na primeira noite que ele é “o lugar da verdadeira prova para quem quer escrever sobre o Holocausto. Como a esfinge que pergunta o enigma. E ali, naquele quarto, você vai por vontade própria e se coloca diante da esfinge. Entende?” Não entendi, é óbvio. Ela suspirou, rolou os olhos para o céu e explicou que há quarenta anos escritores escrevem sobre o Holocausto, e sempre continuarão a escrever a esse respeito, e, num certo sentido, todos estão de antemão fadados ao fracasso, porque é possível traduzir qualquer outra ferida ou desastre para a linguagem da realidade conhecida, e apenas o Holocausto não é passível de tradução, mas sempre restará esta necessidade de tentar de novo, experimentar, afiar os ferrões aguçados na carne viva de quem escreve…” (página 151).

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