Os filhos de Israel

Por ser uma das religiões mais antigas da humanidade, seria de esperar que o judaísmo fosse representado por uma tradição literária sólida e coerente. A literatura judaica, no entanto, mimetiza o percurso errante com que o povo judeu atravessou a história, em meio a diásporas, guerras e perseguições. Essa literatura acabou sofrendo ramificações e edificando características distintas em épocas e locais diferentes. O moderno Estado de Israel, que completou 60 anos de fundação neste ano, vê agora suas letras ganharem uma identidade, finalmente, “nacional”. Em grande parte, isso se deve a três escritores, que tiveram lançamentos recentes no Brasil: Amós Oz, com  a novela Rimas da Vida e da Morte (2008); Abraham B. Yehoshua, com o romance A Mulher de Jerusalém(2004) e David Grossman, com Desvario (2003). Nascidos em Israel, os três formam a primeira geração de autores do país, já que escritores anteriores, como S. Y. Agnon (1887-1970), ainda eram imigrantes.


Oz, Yehoshua e Grossman possuem, cada um, uma maneira pessoal de escrever sobre a vida israelense contemporânea, mas com características em comum, depuradas pelas seis décadas desde a criação oficial do país. E essa literatura também passa pela história do conflito entre árabes e israelenses. Os três autores, atuantes em movimentos pela paz, transportaram essa situação política para os seus livros, ainda que de maneira indireta. O tema primordial deles, a rigor, é o próprio cotidiano israelense: a vida de pais e filhos, maridos e mulheres, irmãos e irmãs, humores e tristezas. A política e a guerra surgem como pano de fundo, sem panfletarismo. Oz, por exemplo, afirma escrever artigos políticos com uma caneta e ficção com outra, para não misturar as funções. Em seus livros, como nos dos outros dois, os desentendimentos com os árabes, o sionismo e a herança do Holocausto demarcam a vida dos personagens sem pautá-las.

Há particularidades neles: em obras como A Noiva Libertada(2001), Yehoshua se mostra otimista, compassivo na visão de como o homem busca se relacionar. Grossman, nas duas novelas de Desvario, explora o erotismo e a função do corpo na transmissão de sentimentos. Ele, que perdeu o filho Uri em 2006, na guerra com o Líbano, sabe bem ser melancólico. Em uma de suas quatro partes da obra-prima Ver: Amor (1986), ele mostra um homem que conta histórias a um nazista para ter a morte em troca – uma Sherazade às avessas. Amós Oz, o mais completo dos três, junta a condescendência de um ao ceticismo do outro, em obras como Não Diga Noite (1997) e De Amor e Trevas (2002). Ainda que faça questão de separar ficção de ativismo, há uma reflexão que Oz costuma repetir em entrevistas que define bem sua obra: ele diz que entre Israel e Palestina não pode haver um desfecho shakespeariano, com todos mortos e honrados, e sim “tchekhoviano”, em que todos terminam perdedores, desencantados e unidos, o único meio de chegar à paz.


Sobreviventes do Holocausto

David Grossman (e), com seus colegas escritores A.B. Yehoshua (c) e Amós Oz (d) antes de uma coletiva de imprensa em Tel Aviv, onde instaram publicamente o governo a acabar com a guerra contra o Hizbolá - 10|08|2006. Três dias depois, o filho de Grossman, Uri, 20 anos, foi morto no Líbano.


A jovem literatura israelense está marcada pelos fatos e conflitos contemporâneos, sem dúvida. Mas ela também ecoa uma tradição milenar que, à sua maneira “dispersa”, consolidou duas linhagens, a americana e a européia. A palavra sempre teve um papel crucial na cultura judaica – desde a Torá, os cinco primeiros livros da Bíblia, sagrados para os judeus, ao lado das narrativas orais do Talmud. Um novo fôlego veio no século 19, com o russo Sholem Aleichem e o polonês I. L. Peretz, primeiros representantes da linhagem européia. Os dois autores deram tratamento ficcional às passagens bíblicas e causos provincianos do folclore judaico, que escreviam em iídiche – uma mistura de dialetos locais com algo de hebraico e aramaico.

No século 20, os escritores judeus solidificaram os laços da herança religiosa com a tradição literária, influenciados pelos duros acontecimentos que acompanharam suas biografias. O anti-semitismo se desenvolveu na Rússia e na Europa ocidental, mesmo em países considerados liberais, como a França, que se viu envolvida no caso Dreyfus, em que um oficial da artilharia, o judeu Alfred Dreyfus, foi acusado — injustamente, como se viria a provar – de traição.

Nessa linhagem européia, estão o tcheco Franz  Kafka, o russo Isaac Babel e o polonês Bruno Schulz, símbolos de uma literatura calcada nas tradições e também delineada pelo destino histórico do povo judeu. São obras de resistência, sombrias, fabulares, escritas com a pena de quem enxerga a morte e o preconceito sempre com proximidade. O humor, nelas, possui um senso trágico e algo desesperado, condizente com o ambiente fortemente racista. Kafka morreu em 1924 e não viu o avanço dos governos totalitários e anti-semitas da Rússia de Stálin e da Alemanha de Hitler. Babel, acusado de espionagem, foi morto pelo governo soviético em 1940, enquanto Schulz foi assassinado por um oficial nazista em 1942. Depois deles, essa linhagem se prolongou com nomes como o italiano Primo Levi e o húngaro Imre Kertész, sobreviventes do Holocausto.


Uma Nova Terra

Nos Estados Unidos, desenvolveu-se uma outra linhagem. Praticada acima de tudo pelos filhos de imigrantes do início do século e, mais tarde, por fugitivos do nazismo, ela não abandonou a relação com os escritos bíblicos. Essas relações, de toda forma, se tornaram secundárias em favor da abordagem da América como nova terra. Naquele momento, em que o pesadelo da Segunda Guerra e do nazismo havia ficado para trás, os judeus viviam em um país regido pela competitividade capitalista, ainda lidando com o preconceito, que ali existia de forma mais velada.

O Prêmio Nobel de Literatura de 1978, Isaac Bashevis Singer, nasceu na Polônia, mas se mudou para Nova York com pouco mais de 30 anos. Na sua obra, fez a transição entre o velho e o moderno fazer literário judaico. Escrevendo em iídiche, construiu uma obra que comporta tanto contos de inflexão folclórica, histórias típicas de vilarejos poloneses, como Gimpel, o Bobo, quanto o amargo romance sobre a experiência dos imigrantes na América, Sombras sobre o Rio Hudson.

Saul Bellow e Bernard Malamud, ambos filhos de imigrantes russos, ajudaram a cortar os laços com a Europa e aprofundaram o dilema do judeu americano que sofre para vencer um “gói” (gentio) na disputa por um emprego ou que se assusta, como o Herzog de Bellow (personagem do livro homônimo de 1964), com o que chama de “falta de humanidade” dos americanos. Ainda assim, o personagem não economiza numa característica marcante dessa linhagem: o humor. Que seria radicalizado mais tarde por Philip Roth. Com o provocativo O Complexo de Portnoy (1969), o escritor institucionalizou o estilo dos autores do Novo Mundo: autodepreciativo, cáustico, conflituoso em relação às gerações anteriores.

Na passagem de uma tradição para a outra – a sombria e fabular dos europeus, a ácida e bem-humorada dos americanos -, Oz, Yehoshua e Grossman buscaram um pouco de cada escola para encontrar sua identidade. Do lado europeu, a relação com a tradição, incontornável para quem vive na própria Terra Santa, e a lembrança onipresente da catástrofe promovida pelos nazistas. Do lado americano, o humor no trato dos pequenos eventos do dia-a-dia. Em um país rodeado de divergências como Israel, não deixa de ser curioso que os livros estejam marcados pela conciliação de dois modelos tão diferentes.


Os livros

Desvario, de David Grossman. Tradução de George Schlesinger. Companhia das Letras, 328 págs., R$ 51;

A Mulher de Jerusalém, de Abraham B. Yehoshua. Tradução de Nancy Rozenchan. Companhia das Letras, 280 págs., R$ 47.

Rimas da Vida e da Morte, de Amós Oz. Companhia das Letras, preço a definir.


Jonas Lopes é jornalista, autor do blog http://gymnopedies.blogspot.com.. Publicado na Revista BRAVO! 09|2008

Início do livro Desvario, de David Grossman

Primeiro capítulo de A Mulher de Jerusalém, de Abraham Yehoshua

Trecho inicial de Rimas da Vida e da Morte, de Amóz Oz

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