Israel tem de superar o trauma do Holocausto

Avraham Burg é um dos homens mais polêmicos de Israel. Avrum, como é conhecido, é filho de um importante político israelense e, como o pai, teve carreira brilhante na política. Chegou a ser cogitado para primeiro-ministro, mas abandonou a política em 2004.

Conhecido pacifista e crítico das guerras em que Israel se envolveu, Burg virou alvo de duras críticas, até de ex-aliados, por conta de um livro, inédito no Brasil, intitulado “O Holocausto acabou: devemos ressurgir de suas cinzas”, no qual diz que Israel perdeu os valores morais do judaísmo.

Para Burg, o sionismo deixou o país sem alternativas para lidar com o mundo moderno e o trauma do Holocausto transformou Israel em uma nação presa ao “judaísmo do gueto”, que se contraporia a um “judaísmo universal”.

Entrevista de Avraham Burg por José Antonio Lima

Avraham Burg

Avraham Burg

QUEM É
Ex-parlamentar do Partido Trabalhista, abandonou a política e o movimento sionista em 2004 e hoje atua como empresário

O QUE FEZ
Foi presidente do Knesset, o Parlamento de Israel (de 1999 a 2003), da Agência Judaica para Israel e da Organização Sionista Mundial. Foi um dos fundadores do PAZ AGORA.

O QUE PUBLICOU
God is back (2006) e The Holocaust is over: we must rise from its ashes (2008)

 

 

ÉPOCA – A ideia central de seu livro é que os judeus são dominados pelos fantasmas do Holocausto. O senhor pode explicar essa ideia?

Avraham Burg – Quando uma pessoa muito jovem sofre um grande trauma ou é vítima de violência, leva muitos e muitos anos para superar o problema. Isso acontece com vítimas de estupro, de abuso infantil. E, se isso ocorre com um indivíduo, ocorre numa escala dez vezes maior com o coletivo.

Os judeus sofreram uma violência brutal há 60 e poucos anos e é natural que agora reajam com muitos medos e uma mentalidade traumatizada. Meu argumento é que é correto se sentir assim, mas a geração de nossos filhos será a primeira na história que não terá mais testemunhas vivas daquilo. E o Holocausto deixará de ser uma experiência pessoal para se tornar uma memória coletiva.

E eu pergunto: como vamos nos lembrar disso? Vamos apenas copiar o trauma para a próxima geração ou vamos trilhar um caminho do trauma para a confiança? Devemos iniciar esse caminho.
 
ÉPOCA – E como esse trauma se expressa na identidade de Israel?

Burg – Quando você escuta a retórica política, as argumentações, a estratégia nacional, os medos das pessoas, os problemas existenciais, ele está lá. Tudo vai em direção, começa ou termina com o Holocausto.

Quando perguntaram a Benjamin Netanyahu (ex-premiê de Israel e candidato nas eleições de fevereiro) o que ele achava de Mahmoud Ahmadinejad (presidente do Irã, que nega o Holocausto e não aceita a existência de Israel) e da possibilidade de o Irã construir uma bomba nuclear, ele não respondeu como se fosse um problema de segurança estratégica atual, mas disse: “Parece a repetição de 1938”.

Mas em 1938 nós não tínhamos um Exército tão poderoso como o que temos agora nem o apoio inequívoco das superpotências do mundo. Esse é apenas um exemplo de como nossos políticos refletem esse trauma com o Holocausto.
 
ÉPOCA – Esse trauma é refletido apenas na cena política do país ou está na vida de um israelense normal?

Burg – Está em todo lugar. Está no pensamento religioso, é parte da atitude nacional, está na vida de muitas pessoas. Quando você pergunta sobre um ou outro assunto, muitos argumentam: “Sim, mas nós tivemos o Holocausto”. Isso ocorre muitas e muitas vezes. Não estou julgando e dizendo que as pessoas estão certas ou erradas. É uma realidade que, na minha opinião, precisamos perceber e enfrentar. 
 
ÉPOCA – Em uma recente entrevista para a revista Time, o senhor questionou se Israel poderia sobreviver sem um inimigo externo. O senhor tem uma resposta para essa questão?

Burg – (Risos.) No meu tempo de criança, todo pai perguntava ao filho: “O que você aprendeu na escola hoje?”. Mas meu pai contava a mim e meus irmãos que, quando Albert Einstein voltava da escola, o pai dele perguntava sempre: “O que você perguntou na escola hoje?”.

Então, para mim, a pergunta é mais importante que a resposta. Pela primeira vez em séculos, a maioria esmagadora dos judeus vive no Ocidente, sob um regime democrático, na civilização ocidental. É uma oportunidade para explorar as possibilidades de uma vida em liberdade, numa civilização que não seja violenta, agressiva ou hostil. Por isso a pergunta se impõe.
 
ÉPOCA – Como o senhor avalia os riscos com os quais Israel convive atualmente?

Burg – Todos os países estão enfrentando riscos atualmente. E Israel tem dois problemas combinados. O primeiro é regional. Nós nunca tivemos sucesso em persuadir nossos inimigos de que a reconciliação é possível. Nunca acreditamos profundamente que a paz é opção número um para nós e para eles.

O segundo é global. O Oriente Médio é uma região tão difícil porque é parte de um conflito muito maior, que é o do hemisfério democrático ocidental contra o islã, e nós estamos bem na linha de frente desse confronto. Isso, no entanto, não traz apenas problemas, mas também uma oportunidade. Se conseguirmos resolver nossos problemas com os palestinos, a Síria etc., pode ser uma indicação para os Estados Unidos e a Europa de que a paz com o islã e os Estados islâmicos é possível.
 
ÉPOCA – O senhor argumenta que a guerra não pode ser a única solução para os problemas do mundo e defende a abertura de diálogo até com os inimigos. É possível convencer grupos e países radicais como Hamas, Hezbollah, Irã e Síria a negociar?

Burg – Essa negociação não pode ser uma questão de persuadir esses grupos e governos a mudar de postura da noite para o dia. É uma questão de mudar a atitude. A nova atitude deve privilegiar a negociação e, mesmo que o diálogo não dê certo, é preciso ter mecanismos de abertura, mesmo para negociar com o Irã e a Síria.

O diálogo é melhor que a hostilidade, e acho que, pensando assim, podemos chegar a um nível em que tenhamos mais cooperação.

ÉPOCA – Alguns críticos dizem que essa proposta de diálogo é ingênua e até perigosa. Como o senhor responde a esses comentários?

Burg – O que eu peço é para verem onde estamos agora. Estamos em uma situação melhor que a de alguns anos atrás? Claro que não. É por isso que eu defendo essa nova iniciativa, de acreditar nas pessoas, mesmo nos inimigos. É melhor que a estratégia de não negociar e atirar.

Atacar os vizinhos não vai levar ninguém a uma situação melhor. Mesmo que seja difícil e que muitas vezes a negociação não produza resultados, olho para a história do mundo e vejo que as nações que dialogaram têm uma realidade muito melhor que as que permanecem isoladas.
 
ÉPOCA – O senhor acredita que o último conflito em Gaza piorou ainda mais as chances de um diálogo futuro?

Burg – Ainda que a soberania de Israel tenha sido severamente violada pelos foguetes, foi uma operação militar estúpida. Não nos deixou nem um milímetro mais perto de uma situação melhor. Por isso fui contrário a ela.

Não acredito em ações militares que tenham como objetivo substituir um regime político. Sempre que puder dar minha opinião para a sociedade, nunca será em direção ao conflito. Apesar disso, reconheço que muitas vezes no Oriente Médio os conflitos levaram as partes à mesa de negociação, mas será que essa operação vai facilitar a abertura de diálogo com o Hamas? Infelizmente, acho que não.
 
ÉPOCA – Como o senhor, um ex-membro do establishment israelense, se tornou tão crítico sobre Israel?

Burg – Sei que é difícil para muitas pessoas entenderem e parece um paradoxo, mas um político também pode ser um pensador. Eu observo e percebo que esse establishment precisa de novos pontos de vista, e é isso que tento fazer.
 
ÉPOCA – Seu pai (Josef Burg) foi o fundador de um partido chamado Partido Religioso Nacional. Hoje, no entanto, o senhor defende um país no qual a religião tenha menos importância…

Burg – A combinação de política com religião é perigosa em qualquer país, especialmente em Israel. Por isso defendo a ideia de que devem ficar separadas. Eu me preocupo e tenho medo do fundamentalismo religioso não apenas muçulmano, mas em geral. Esse é um aspecto em que me afasto da herança do meu pai. Ele acreditava nessa mistura, mas eu não acredito.

ÉPOCA – Qual é sua expectativa para as eleições de fevereiro?

 Burg – Eu me aposentei da política justamente para não esperar nada. Agora, sou apenas um cidadão comum atuando na vida econômica e intelectual do país, sem nenhum envolvimento com o processo político. Vou votar no novo partido de esquerda (chamado Movimento Novo, o partido foi criado para as eleições deste ano e tem atraído intelectuais e ambientalistas).

[ publicado na revista Época ]

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