Uma certa paz – uma leitura


Depois da criação do Estado de Israel, nada mais seria igual – nem mesmo o amor. A declaração, feita por um teórico do sionismo em 1948, foi publicada num artigo de jornal israelense poucos meses antes daquele histórico episódio e ficou guardada na memória do escritor Amós Oz, hoje com 71 anos. Ele tinha apenas 9 anos quando a leu.

A assertiva está na base de ‘Uma Certa Paz’, obra que, lançada em 1982 e enfim traduzida no Brasil, figura entre as mais importantes do principal nome da literatura israelense. Com narrativa centrada entre 1965 e 1967, período imediatamente anterior à Guerra dos Seis Dias, o romance aborda um momento em que a distância entre os ideais e a realidade tornava-se cada vez mais perceptível para os filhos dos pioneiros de Israel.

“A guerra contra os países árabes em 1967 transformou o novo Estado de maneira radical”, diz o autor em entrevista por telefone ao Sabático, de Tel-Aviv, onde estava na última quinta-feira, prestes a viajar para um book tour pela Europa. “Os conflitos já existiam, mas Levi Eshkol (primeiro-ministro de 1963 a 1969) amava a paz, acreditava nela. Foi depois da guerra que Israel desenvolveu o apetite pelos territórios ocupados e a fixação pela força militar como meio de conquistá-los.”

Oz constrói nesse ambiente de tensões pré-conflito uma história de “amor, solidão, desejo e desespero”, em suas próprias palavras. Na narrativa, Ionatan Lifschitz, de 26 anos, filho do líder de um kibutz próximo à fronteira com a Síria, planeja deixar para trás a mulher, Rimona, e a rotina monótona da comunidade rural. Está cansado do círculo social que cerceia seus interesses e tomado pela sensação de que há muito a conhecer. A decisão é anunciada já nas duas primeiras frases do romance (“Um dia um homem se levanta e muda de um lugar para o outro. O que ele deixa para trás de si fica para trás e só lhe vê as costas”), contudo o caminho até sua concretização, durante úmido e rigoroso inverno, toma quase as duas primeiras centenas de páginas. Enquanto não leva a cabo o projeto, Ionatan conhece o jovem Azaria Guitlin, que faz o caminho inverso – socialista convicto, saído de Tel-Aviv, pretende tornar-se parte daquela comunidade igualitária e democrática. Quando Ionatan enfim se vai, Azaria assume sua casa e sua mulher na expectativa sincera da volta do amigo.

Nove anos mais velho que o Estado de Israel, Amós Oz descreve no romance cenário que lhe é muito familiar. Em 1954, aos 14, dois anos após a morte da mãe, o descendente de russos nascido em Jerusalém deixou a casa do pai em busca de vivências radicais no kibutz, assim como Azaria. Também à semelhança do personagem, é aficionado por Espinoza (1632-1677), filósofo em que se especializou na Universidade Hebraica de Jerusalém. Azaria, incansável conversador, encaixa onde pode idéias do racionalista. “Há mil anos Espinoza escreveu que só com generosidade e amor pode-se conquistar o próximo”, argumenta numa de suas primeiras aparições, na tentativa de convencer Iulek, pai de Ionatan, a deixá-lo ficar na comunidade.

Polifonia

Oz viveu no kibutz de Hulda, onde se casou e teve três filhos, por mais de 30 anos. Trocou a comunidade pela pequena cidade de Arad em 1986, quatro anos depois de descrever a partida de Ionatan em Uma Certa Paz, mas os motivos foram menos emocionais – àquela altura, o filho caçula sofria de asma e foi preciso procurar lugar de clima mais ameno. No livro, à chegada de Azaria e à partida de Ionatan, Oz contrapõe os olhares de Iulek e de sua mulher, Chava, entre outros. “Construí um romance polifônico, mas permaneço por trás de cada uma daquelas vozes. É uma convivência que conheço de dentro para fora, as fofocas, os hábitos, a ideologia.”

Os diferentes pontos de vista ajudam a compor esse ambiente bucólico, que se desenvolve perto das ruínas de uma aldeia árabe construída no século 8.º e destruída por ocasião da declaração de independência de Israel. “No alto da colina (…), erguiam-se as ruínas de Sheikh-Dahar: paredes partidas, encarvoadas pelo fogo (…). E elevando-se acima de tudo a mesquita amputada, que foi ceifada, assim se conta entre nós, por um preciso obus de morteiro disparado pelo comandante do Palmach durante a guerra da independência”, descreve o romance.

Uma Certa Paz - de Amós Oz

Uma Certa Paz - de Amós Oz

Entre a promessa de uma vida comunitária e as ruínas, equilibram-se os sonhos de Azaria e as desilusões de Ionatan. Quando Azaria tenta argumentar sobre a ordem obrigatória e fixa da realidade, o amigo interrompe os devaneios filosóficos justamente com a crueza da realidade. Lembra que, num ataque ao Exército sírio, ele e outros soldados israelenses levantaram um cadáver cortado pela metade, acomodaram a parte da barriga para cima no banco do motorista de um jipe, com mãos no volante, e lhe enfiaram um cigarro aceso na boca. “Até hoje entre nós isso é considerado uma piada da qual nos lembramos e rimos. O que seu Espinoza diria sobre isso? Que somos lixo? Animais selvagens?”, provoca Ionatan. A questão é que Azaria, como percebe o líder Iulek, é um “jovem nascido na geração errada”. Acredita na justiça e na paz, porém Ionatan já viveu conflitos o suficiente para pensar de outra forma.

Manifestos

Amós Oz diz que ‘Uma Certa Paz’ é, acima de tudo, sobre “o amor de dois jovens homens e uma mulher”. Costuma repetir que não é sociólogo para generalizar os traços de uma geração, embora não resista a identificar aqui e ali características comuns a jovens israelenses em diferentes períodos da história. “Ionatan vive sob a sombra de ser filho de um líder, de um fundador de Israel, e de pensar diferente, mas não se pode dizer que ele reflita o que a juventude sentia”, minimiza, para pouco depois concluir: “Os pais e mães fundadores de Israel, a geração dos personagens Iulek e Chava (mãe de Ionatan), eram notáveis, poderosos, até despóticos, mas também idealistas. Não vejo algo similar na Israel do futuro.” Nem mesmo na literatura, onde em seu país se destacam hoje escritores como o best-seller Etgar Keret, autor de romances e graphic novels em que a política não é prioritária: “Tenho a impressão de que os escritores e poetas mais jovens estão mais preocupados com suas vidas de cada dia do que com a vida do país”, sentencia.

O autor de ‘Não Diga Noite’ (1997) e ‘A Caixa Preta’ (2003) nunca gostou de críticas que vêem alegorias sociais e políticas em sua ficção. “Meus romances não são manifestos políticos”, reclama. “O que acontece é que minha literatura envolve personagens com forte senso de política, de forma que esse caráter acaba ressaltado. Azaria é o maior portador dessa característica nesse romance, no entanto, as opiniões dele e dos outros personagens não são as minhas.” Pensamento diverso do de Oz também tem no romance o músico Srulik, que sucede Iulek no comando do kibutz. Pouco antes de assumir o cargo, o personagem reflete: “Nunca acreditei de verdade que um judeu seja capaz de se assimilar com sucesso total.” Mas é Srulik o único capaz de entender como dialogam as vozes do kibutz, como analisa o autor: “Ele tem o ouvido musical para perceber de que maneira as conflitantes vozes do romance se tornam harmônicas.”

Se diz não fazer manifestos na literatura, Oz é pródigo em ensaios nos quais analisa a questão árabe-israelense – além dos livros publicados, de tempos em tempos resolve enviar para jornais israelenses artigos sobre questões que lhe chamam a atenção, devidamente reproduzidos em veículos como o New York Times e o Guardian. Um dos primeiros integrantes do movimento PAZ AGORA, defensor da coexistência de dois Estados em Israel, o autor tem plena consciência de que é sobre os conflitos que se espera que fale e são mesmo eles que mais o fazem se estender em argumentos. “Tenho noção da injustiça e isso me causa grande revolta. Fico aborrecido com as lideranças de Israel e da Palestina porque ambas sabem que a única solução é a criação de dois Estados, mas não fazem nada por isso.”

 [ por Raquel Cozer – publicado n’O Estado de S.Paulo em 16/10/2010 ]

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