Do pacto perverso aos conflitos universais

Este orador se fez íntimo do seu público, desde o início do seu discurso: narrou vinhetas hilárias sobre representantes do poder americano e levou-nos também a rir  de um episódio relacionado ao 11 de setembro, em que o lado cômico apagava os vestígios da tragédia.  Aparente conclusão de sua vinheta: os americanos não eram vítimas inocentes, justificando-se assim o acontecido. A seguir,  falou da resistência de crianças palestinas que jogam pedras nos soldados israelenses e de crianças iraquianas, que dizem palavrões em árabe, ininteligíveis para os americanos, quando chamadas a tirar fotos apertando a mão de soldados.

 Ali exaltou a coragem dos que participam da ‘resistência’ e se propôs como um seu exemplo, por haver imposto aos editores americanos de seu último livro uma capa, que mostrou à platéia, e que consiste na foto-montagem de um menino iraquiano de 2 anos, urinando na cabeça de um soldado americano. Esta imagem capturou a platéia, imaginariamente – no sentido lacaniano de ser cativada por uma imagem, isto se dando na dimensão imaginária enquanto oposta às dimensões simbólica e real – identificada com o menino heróico que, como um pequeno David, vence Golias através de um estratagema aparentemente anódino e cômico. 

 Da mesma forma que  no uso da anamorfose (Lacan, 1959) [4] , esta montagem oculta (ao mesmo tempo em que, a partir de outro locus revela) o que está em jogo: morte e destruição.  Assim como a beleza é o último bastião diante da morte (podendo ser concomitantemente vista como seu disfarce (Freud, 1913), a imagem do herói-menino, mais potente do que o soldado armado no qual ele urina, parece ter servido para promover o esquecimento do real da morte da situação de guerra, terrorismo e ódio intergeneracional, ao mesmo tempo que sedutoramente – no sentido de que somos capturados pela imagem do pequeno David sobrepujando um soldado-Golias – nos arrastava para ela. 

 Assim como no quadro ‘Os Embaixadores’ de Holbein (Lacan, 1959), onde a vanitas esconde – e de um ângulo diferente revela – o fato de ser máscara mortuária, a imagem sedutora do jovem herói membro da resistência, cuja arma é apenas o seu falo e a ‘graça’ atrevida do que faz, esconde (revela) a luta mortífera que está sendo louvada e proposta.

Tariq Ali

Tariq Ali

 Através do humor cruel – o que ridiculariza e desfaz dos outros (Freud, 1905) – que cria uma frente única de superioridade diante dos outros ridicularizáveis, e através da foto-montagem, com sua captura imaginária que fascina e imobiliza no domínio do especular pré-simbólico, o orador nos seduzia a identificar-nos uns aos outros, o que resultava em uma unidade de massa em que discordâncias não mais pareciam passíveis de serem toleradas ou de ocorrer.  Logo depois, o orador teceu elogios aos homens-bomba.

 Em seu discurso, Ali fez muitas observações antisemitas que abaixo serão citadas e discutidas, inverdades históricas e citações espúrias, tudo na direção de afirmar que os atos terroristas são uma necessidade política. O discurso foi recebido por aplausos entusiásticos, o  que consternou os que tinham acordado do sono da consciência induzido pelo orador.   A quem estranhou a falta naquele discurso da palavra paz, o orador respondeu que há somente oprimidos e opressores, não sendo possível, assim,  falar em paz. (Isto foi um insulto aos que, no caso de palestinos e israelenses, trabalham juntos por esta e que tentam chegar a um ponto zero de ressentimentos a fim de que a coexistência pacífica seja possível).

Na sua maior parte, as pessoas louvaram o discurso.  Mas houve também os que – minoria de judeus e não judeus – foram traumatizados por ele [5].  O orador fez um discurso consistente de incitação à violência contra grupos e países, eivado de comentários anti-semitas: disse, por exemplo,  que os judeus aprenderam com os nazistas a ser como eles, e tratam os palestinos como Untermensch  (usou a palavra alemã); citou estatísticas forjadas sobre violências, afirmou que os palestinos sofrem como os judeus sofreram sob os nazistas, mencionou en passant ‘os campos’, apagando-os ao mencioná-los, criticou a falta de resistência dos judeus quando sob o nazismo, por não se terem estourado como os homens-bomba o fazem e, ao invés, terem-se deixado levar como gado ao abatedouro.  Misturou tempos e povos, apagou o passado fazendo-o parecer acontecendo no presente, os palestinos sendo os judeus e estes os nazistas.  Também afirmou que os judeus estavam  bem integrados na Europa quando do advento do nazismo, e que fora Herzl, o criador do sionismo, que teria estado na origem da percepção de Hitler sobre os judeus: a fonte de Hitler teria sido os escritos de Herzl (!).

Em Group Psychology and the Analysis of the Ego (1921),  Freud escreve que um líder pode com facilidade provocar a perda de seus comandados que, identificando-se uns aos outros e a ele próprio, abdicam de sua capacidade crítica.  Na situação em pauta, entre os que gostaram do discurso, houve os que o ouviram como um chamado à paz e os que disseram que éramos nós judeus que ouvíramos de modo diferente.  Houve também os que abdicaram por completo de suas capacidades críticas, justificando seu aplauso pelo fato de que psicanalistas muito conhecidos e que eles admiravam tinham gostado do discurso.  O orador infantilizou a audiência e fez-nos rir de modo confiante, como resposta ao que parecia um convite a um inocente fazermos pouco dos poderosos de pés de barro. Levou-nos.  Houve os que despertaram, ou porque foram agredidos, ou por perceberem que muitos haviam sido agredidos e, portanto, toda a audiência ou, ainda,  porque perceberam onde tudo aquilo levava.

Na sua responsabilidade de análise crítica, a psicanálise pode contribuir para pensar este episódio que nos implica.  Os líderes carismáticos conhecem as técnicas de sedução e desenvolveram a arte de bem mentir.  Enquanto sujeitos divididos, somos vulneráveis a tudo isto.  Fomos chamados a delegar nosso entendimento e a furtar-nos à responsabilidade.   Zizek nos alerta contra isto, assim como os autores da escola de Frankfurt o fizeram.  Os perversos sabem histericizar suas platéias.  Sabem fazer-se instrumentos do gozo do grande Outro; e como seduzir-nos a um pacto perverso onde a violência proposta é semantizada como virtude.

Já em 1988, Ribenboim e Green referiam-se à alarmante normatização da psicopatia em nossos tempos.   Desde então, o cenário  da desertificação progressiva do planeta se acompanha de uma crescente narcotização de nossas consciências diante do inverossímil.  O tecido comunitário se esfarrapa.  Ao tentar entender nossos tempos para saber de que modo agir a fim de fazê-los menos sombrios, buscamos respostas em ícones de pensamentos atuais, como o da anti-globalização. 

Entre eles, há os que apontam para caminhos e nos convidam a diálogos e há os que tentam controlar-nos através da sedução, tampouco admitindo que se pense de outro modo que o deles.  Cabe-nos a análise crítica que as ferramentas da  psicanálise nos possibilitam a fim de detectar os chamados a pactos perversos e denunciá-los.  Ademais, o episódio em questão talvez nos permita um novo conhecimento de nós mesmos em nossa vulnerabilidade.

O evento em pauta revela a importância de renovarmos nossa aliança com a tradição psicanalítica de análise de fenômenos sociais (exemplificada, por exemplo, pela Escola de Frankfurt, a qual Adorno, Benjamin, Horckheimer e Marcuse pertenciam), e já se presentificara em Freud (1916, 1926), que nos ensina a desarmar os pactos perversos tais como os que têm lugar entre o analista e seu paciente quando aquele tenta forçar seus próprios ideais sobre o paciente e ‘… com o orgulho de um Criador tenta formá-lo à sua própria imagem…’  (Freud, 1916:165).  Adiante, Freud escreve que a psicanálise não deveria: ‘… colocar-se a serviço de uma qualquer visão filosófica do mundo… [nem] deveria urgir o paciente a isto, com o propósito de enobrecer seu espírito.  Na minha opinião, isto só serve para usar da violência, mesmo que esteja encoberto pelas razões mais honradas…’.

Freud também menciona que, no tempo em que escrevia, a psicanálise se limitava a atender as classes abastadas e não podia fazer nada para as mais vastas camadas sociais, que sofriam extremamente de neuroses.  Freud previu um despertar da consciência social quanto aos direitos dos pobres a serem assistidos;  condições seriam então criadas para a aplicação em ampla escala da psicanálise.  Assim que havia em Freud alguma convicção num futuro despertar da consciência social.  Esta  convicção possibilita uma renovada esperança de utopias, não mais melancólicas porque ‘…nós apenas nos desabituamos aos milagres…(Zizek, 2001, p.84).  

Este autor propõe um universalismo baseado na descoberta de novos nós (no sentido de que conflitos aparentes entre grupos muitas vezes escondem o que é comum a tais grupos e portanto como seria possível que eles se unissem para se tornarem um nós se apenas eles também percebessem suas similitudes), como o tentam os que assinaram o Acordo de Genebra, aqueles palestinos e israelenses  não mencionados por quem propunha o pacto perverso, porque a este não interessa uma paz que escape ao jugo do supereu e ao gozo do espetáculo da violência.

A psicanálise já no passado foi chamada a pactos perversos. Uma história oficial é proposta, com o silenciamento sobre fatos incômodos, que revelariam o mal-estar. Impede-se  que a verdade circule.  Porém, o segredo faz parte do ritual perverso e, enquanto não assumirmos nossa responsabilidade para com a vocação libertária da nossa profissão, de denúncia  e de análise crítica, estaremos referendando o ocultamento dos fatos e participando do pacto perverso; deste modo, estaremos posicionando-nos contra a ‘peste’ que a psicanálise elegeu-se a representar [6], que questiona o convencional que apaga os traços da História.

Para reconhecer e desmontar pactos perversos, é importante voltarmos aos escritos freudianos (e de outros autores), como o que discute a da psicologia das massas, aos autores da escola de Frankfurt e sua análise crítica, e a autores contemporâneos, que nos ajudam a pensar questões do mundo a partir da psicanálise.  Isto nos ajudará a sermos menos vulneráveis à sedução de líderes carismáticos, protegerá a psicanálise na sua vocação de ‘praga’  e permitirá a continuidade da sua transmissão.

 

Notas

[1] Para Benjamin (1968), os grilhões dos que foram escravizados no passado podem ser quebrados por uma ação libertária no presente. Isto porque, na sua visão, a história nào é composta de um tempo vazio e homogêneo, mas antes implica num ponto de vantagem de onde as similaridades entre o presente histórico e os acontecimentos passados podem ser vistos.  Este presente e este passado configuram uma unidade complexa, uma constelação prenhe de tensões.  O pensamento pode transformar tal constelação numa conjuntura ou mônada ao estilhaçar o continuísmo histórico e resgatar um passado de injustiças.  Um materialista histórico, de acordo com Benjamin, ‘pode reconhecer nesta mônada uma possibilidade revolucionária na luta para libertar um passado oprimido’.

[2] Sobre o islamo-fascismo, Zizek diz: “…Mas eu penso que devemos dar a este termo um sentido estritamente Marxista.  Islamo-fascismo é fascismo como uma estratégia desesperada na defesa do capitalismo…” (2004, p. 158). (tradução da autora).

[3] Quanto ao conceito de terrorismo, Derrida (2004) adverte para o seu uso confuso e abusivo, ideologicamente instrumentalizado, que levou a chamar de terroristas movimentos que mais tarde foram reconhecidos como libertários, ou os que visavam a instauração ou restauração de um Estado-nação; segundo ele, o que se chama hoje de terrorismo internacional não tem qualquer pretensão política e se baseia ‘…em movimentos de violência selvagem, de utilização de destruição em massa, incontrolável etc.’  (p.11).  Derrida também enfatiza esta palavra provir do terror que teve lugar na época revolucionária francesa, que fundou os direitos do homem.  Daí a dupla vertente da palavra já na sua origem: a ideológica, com a fundação dos direitos humanos através do uso de meios violentos – esta violência sendo quase sempre esquecida quando a referência é aos direitos humanos que ela fundou – e a da destruição e violência incontroláveis, originadas por seu próprio encetamento.

[4] Anamorfose refere-se a uma imagem distorcida de modo a só ser reconhecível de um certo ângulo.  Usualmente, ela é vista como sem sentido, mas adqüire uma forma reconhecível a partir de um certo ponto de vista.  No ‘Os Embaixadores’, há dois emissários na corte de Henrique VIII, no meio de objetos que representam o conhecimento no Renascimento.  U’a mancha alongada na parte inferior do quadro pode ser reconhecida como uma caveira quando vista de lado.  Esta mancha não é parte do campo do resto do quadro, mas ela muda seu sentido: como um lembrete da morte, ela mancha as conquistas mundanas que são então mostradas como apenas vaidades (8).

[5] Seria o trauma a despertar alguns membros da platéia que, como se hipnotizada pelo orador, abandonara toda sua capacidade crítica. O trauma (Caruth, 1996) nos despertaria do sono da consciência para nossa responsabilidade alteritária, a fim de testemunharmos pelos que foram vitimados por genocídios e crimes, não podendo falar em seu próprio nome, e para transmitirmos este despertar para a responsabilidade alteritária aos demais. Aqui estaria também envolvida a própria transmissão da psicanálise.

[6] É relatado que à sua chegada em Nova York, onde foram calorosamente recebidos, Freud teria dito em tom de brincadeira que seus anfitriões não suspeitavam de que eles lhes traziam ‘a peste’.

Referências

Benjamin, W (1968) Theses on the Philosophy of History (p. 253-264) in Illuminations, ed. por Hannah Arendt, Schocken Books, New York.

Derrida, J (2004) Entrevista por Evando Nascimento, especial para a Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 15 de agosto de 2004, ps.10-11.

Caruth, C. (1996) Unclaimed experience The John Hopkins University Press, Baltimore.

Freud, S. (1926) The Question of Lay Analysis Standard Edition vol. XX of the Complete Works of Sigmund Freud, London, The Hogarth Press, 1959, ps. 183-258.

Freud, S. (1921) Group Psychology and the Analysis of the Ego, Standard Edition vol.XVIII of the Complete Works of Sigmund Freud, London, The Hogarth Press, 1955, ps. 69-143.

Freud, S. (1918) Lines of Advance in Psycho-analytic Therapy, Standard Edition vol. XVII of  the Complete Works of Sigmund Freud, London, The Hogarth Press, 1955, ps. 159-168.

Freud, S. (1913) The Theme of the Three Caskets, Standard Edition vol. XII of the Complete Works of Sigmund Freud, London, The Hogarth Press, 1955, ps. 289-301.

Freud, S. (1905) Jokes and their Relation to the Unconscious, Standard Edition vol. VIII of the Complete Works of Sigmund Freud, London, The Hogarth Press, 1960.

Kershaw, Ian (2001), Hitler, 1939-45: Nemesis, Harmondsworth, Penguin.

Lacan, J. (1959-1960)  Le Séminaire,  livre VII, L’éthique de la Psychanalyse, Éditions du Seuil, Paris, 1986

Marcuse, H. (1968), One dimensional man.  Great Britain: Sphere Books; 1968.

Myers T. Slavoj Zizek.  London: Routledge; 2003.

Rieber, Robert W. and Green, Maurice (1989) “The psychopathy of everyday life:antisocial behavior and social distress in Commnunications: Man and Society, edited by Robert Rieber, Cambridge, University Press, ps. 48-89.

Zizek, Slavoj & Dale, Glyn (2004) Conversations with Zizek, Polity Press, UK.

Zizek, Slavoj (2003),  Bem-vindo ao deserto do real! Boitempo Editorial, São Paulo.

Zizek, Slavoj (2001), On Belief,  Routledge, London.

A Doutora Edelyn Schweidson é membro da SPID (Sociedade Psicanalítica Iracy Doyle) do Rio de Janeiro e ativista dos Amigos Brasileiros do PAZ AGORA.

[ Texto publicado originalmente em inglês no International Forum of Psychoanalysis – 2005 14:21-27 – versão inédita em português publicada pelo PAZ AGORA|BR ]


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