Contra a barbárie

A tragédia que atingiu milhares de pessoas em Nova Iorque e Washington e, por extensão, a toda a humanidade nos obriga, militantes da utopia da construção de uma sociedade sem violência e injustiças, a enfrentar algumas interrogações cruciais sobre o destino deste nosso mundo e do sentido de nossas ações.

Não podemos, nem devemos abdicar de nossa liberdade, sinônimo da responsabilidade como cidadãos brasileiros e do mundo, tentando encontrar respostas para o dilema existencial individual e que faça sentido também para os desafios coletivos.

Vivemos clamando contra a exclusão, a opressão e as injustiças cometidas contra os mais fracos. Os ataques mortíferos de terroristas fanáticos mudariam algo em nossas análises e perspectivas?

Há muita insensibilidade à violência no trato dos “outros” em nossa vida rotineira mas, persiste a indagação …”o que ocorre na forma como organizamos a vida em nossas sociedades que maltrate os outros e os empurra para a violência?”

A explicação dos atentados do dia 11 de setembro foge de um raciocínio linear, cartesiano, da mesma forma como as conjecturas sobre as possíveis respostas por parte dos EUA.

Devemos procurar evitar o maniqueísmo que levaria à aplicação da lei de talião “olho por olho, dente por dente”. Esta parece ser a atitude da maioria da população norte-americana, reforçada pelas primeiras manifestações de seus governantes. Tanto o presidente Bush quanto o secretário Colin Powell declararam textualmente…”os Estados Unidos estão em guerra” e advogam a retaliação, para restaurar a auto estima e a confiança da população, duramente abaladas após o ataque. Afinal, foi o primeiro ataque ao território norte-americano desde 1814 quando tropas inglesas, combatendo a nova república independente incendiaram a capital – Washington.

Perda

Perda

É possível retaliar sem distinguir entre aqueles que perpetraram o ataque criminoso (supostamente o grupo de Osama Bin Laden) e o país que os abriga? Bombardeando o Afeganistão significaria mais vidas inocentes ceifadas e novas ondas de ódio e vingança a partir do mundo islâmico.

Os estados “irresponsáveis” (Afeganistão, Iraque, Irã, Síria) que se consideram irmãos na defesa do Islam, parceiros na luta anti-Israel ou, na grande batalha dos pobres contra os ricos, ficariam calados e passivos diante uma retaliação massiva pelos Estados Unidos?

Há vários grupos de terroristas que contam com milhares de adeptos fanáticos dispostos a sacrificar se em nome de um fundamentalismo religioso radical, totalmente refratário à argumentação da lógica ocidental. A eventual morte num bombardeio de Bin Laden despertará milhares de voluntários a engajar se nas fileiras do exército de terror, dispostos a substituir os “mártires” mortos em “combate” ou seja, nos atentados suicidas.

Ao resvalar para uma escalada da violência, abre se um conflito de conseqüências imprevisíveis, pela propagação do ódio no mundo islâmico, do norte da África até o arquipélago da Indonésia.

E os países ocidentais tornar-se-ão mais vulneráveis aos ataques dos militantes, apesar de reforços no controle das fronteiras e aeroportos. Deixemos claro: o terror é injustificável por afetar inocentes e ameaçar o mundo com a barbárie. Mas, ataques indiscriminados a países islâmicos só alimentarão as fileiras do fanatismo. O terrorismo é a arma dos fanáticos, dos desesperados mas que exerce fascínio e atração entre milhares de párias, produtos da opressão e do desencanto das promessas secularistas de um “desenvolvimento” que nunca chegou.

É possível atacar e remediar as causas desses fenômenos anômicos, para tirar a legitimidade aos terroristas? Como disse Nelson Mandela, …”é preciso identificar e punir severamente os responsáveis pelos atos terroristas”. Mas para responder ao crime cometido, sem enveredar pelo caminho da retaliação que gera mais violência, devemos perguntar sobre a origem e a dinâmica da violência que se propaga pelo planeta.

Devemos eliminar as causas da frustração e do desespero, enquanto resistamos à expansão do terror. Se é impossível continuar na trilha de exclusão e de injustiças, como podemos lutar contra uma situação que parece não oferecer alternativas ou condições para mudanças por meios políticos pacíficos?

Como enfrentar grupos de suicidas, fanáticos, armados de facas e estiletes, capazes de infligir pesadas perdas materiais, humanas e morais a milhares de pessoas, inocentes e indefesas?

Pesquisando as origens do terror nas últimas décadas, ressalta a irracionalidade da política dos Estados Unidos, na contra-mão da História. Foi a CIA quem treinou e armou o Taliban e grupos de Osama Bin Laden na luta contra a invasão do Afeganistão pela ex-União Soviética. Foram os Estados Unidos que armaram e apoiaram Sadam Hussein na guerra Iran-Iraque que ceifou um milhão de vidas. Na América Latina, os Estados Unidos apoiaram regimes ditatoriais que usaram a violência e a tortura contra populações indígenas e oposições políticas (Brasil, 1964, Chile 1973, Nicarágua, Guatemala, Granada, Panamá, República Dominicana).

Confiantes do seu arsenal de armas nucleares, químicas e biológicas, os EUA impuseram ao mundo um sistema que mina o sustento e a sobrevivência da vida no planeta, enquanto suas corporações depredam os recursos naturais, poluem rios e lençóis freáticos e contaminam os solos com resíduos tóxicos dos processos industriais.

Em vez do escudo espacial – a guerra nas estrelas de Ronald Reagan – dirigido contra o inimigo em um mundo bipolar, a luta contra o inimigo invisível – o terror – exige uma mudança radical de estratégia. Em vez de zelar pela segurança individual do país e seu espaço, é preciso planejar e mobilizar as populações para a segurança coletiva, em escala planetária.

Para os militantes por uma “sociedade sustentável” surge assim uma nova frente de luta pela paz, em continuidade e coerência com os objetivos de justiça social, democracia e defesa intransigente dos direitos humanos.

Rejeitamos uma reação cega e instintiva, ditada pelo orgulho ferido e o desejo de vingança. Enquanto continuem as investigações para estabelecer com razoável certeza os verdadeiros responsáveis pelos ataques, uma política responsável procurará articular uma ação conjunta, através da organização das Nações Unidas, quer dizer com a participação da Rússia e da China. Em outras palavras, em vez de uma ação unilateral baseada no poder de fogo das forças armadas norte-americanas ou, mesmo em colaboração com as tropas da OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte – é preciso mobilizar todas as nações membros da ONU, na luta contra o terrorismo. Seria uma agência internacional de luta contra o terrorismo, como parecem desejar os presidentes W. Putin da Rússia e Jiang Zemin da China?

Mais importante do que a forma jurídica – institucional do órgão afigura-se o conteúdo e os procedimentos a serem adotados.

O princípio básico da santidade da vida humana e a rejeição intransigente de todas as formas de racismo, xenofobia, preconceito e intolerância constituirão condições sine qua non de uma ordem social ciosa dos direitos de todos seus membros à dignidade e respeito, excluindo a possibilidade de tratar os “outros” como “meios para fins”, religiosos, nacionalistas ou ideológicos.

Devemos reverter o desencanto com as políticas de desenvolvimento oficiais que tem beneficiado uma minoria, em detrimento da maioria. Uma política alternativa de desenvolvimento pela qual se conseguirá a identificação e o alinhamento da maioria da população, sobretudo do mundo pobre, em defesa dos direitos humanos de todos e da aplicação das leis internacionais em benefício de todos é a única forma de apagar o incêndio e eliminar o caldo de cultura do terrorismo.

Foi o fracasso do Estado de cumprir com suas tarefas históricas de planejar, induzir, orientar e fiscalizar o processo de desenvolvimento diante a investida das grandes corporações legitimada pela doutrina neoliberal da globalização que potencializaram os efeitos de polarização, exclusão e injustiças contra os mais fracos e deserdados.

Os milhões de famintos, desempregados, desabrigados e refugiados que, ao perder a esperança de redenção são levados pelo desespero e a revolta a reações violentas, constituem o imenso caldo de cultura onde são recrutados os guerreiros terroristas.

Quando não são arregimentados nas fileiras dos fundamentalistas religiosos que lhes prometem a redenção no paraíso, tornam-se vitimas de drogas, álcool e de auto-destruição. Esta é uma tendência universal, não somente restrita ao mundo islâmico. Fundamentalistas religiosos fanáticos surgiram em várias regiões do mundo, também entre cristão e judeus. Todos acreditam piamente que os fins (a “verdade”) justifiquem os meios, sejam eles de natureza religiosa, nacionalista, ideológica, sempre sustentados por um fanatismo extremo que nega o “outro” e seus direitos à vida.

Entretanto, a penetração de grupos terroristas numa população miserável e oprimida não pode servir de legitimação para represálias maciças contra a população civil indefesa, que assim também se torna vítima das ações terroristas.

É nossa a responsabilidade de “consertar o mundo”, de restituir a esperança às populações empobrecidas e injustiçadas e, assim, mantendo a utopia – o protesto e o sonho de um mundo melhor.

[ O Professor Henrique Rattner é membro do PAZ AGORA|BR. ]

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