Dores de crescimento para um novo Egito

O adesivo de pára-choque da Primavera Árabe sempre foi evidente: “É o Egito, idiota”.

A Praça Tahrir foi o epicentro não apenas da rebelião de um país, mas também da súbita pressão árabe para se libertar de uma cultura de vitimização e humilhação em busca de maior liberdade e representação. A nação mais antiga do mundo, referência cultural e lar de um quarto do mundo árabe, ou indicaria o caminho a seguir ou demonstraria a inutilidade da empreitada.

E aqui estamos, nove meses após a deposição de Hosni Mubarak, com vastas multidões congregadas mais uma vez na Praça Tahrir, os militares e os islâmicos se enfrentando, os egípcios seculares hesitantes entre os riscos da democracia e uma nova autocracia, e eleições parlamentares marcadas que parecem vulneráveis a eventos tumultuosos.

Uma maneira de ver essa confusão é como é difícil o processo dos árabes aprendendo a discordar em uma sociedade plural. O acordo não é problema quando um ditador e sua polícia secreta controlam tudo. A discórdia civilizada é o sinal de uma sociedade saudável, mas alcançá-la não pode ser às pressas: é um trabalho que leva uma geração.

Sob uma visão otimista, a multidão de novos partidos políticos (incluindo uma série de movimentos divergentes sob o guarda-chuva islâmico), a furiosa impaciência com o Conselho Supremo das Forças Armadas (SCAF, na sigla em inglês) governante e o caótico vaivém entre os militares e seus adversários são sinais de que o Egito embarcou em uma mudança irrevogável para um sistema político baseado em valores democráticos.

Uma análise pessimista concluiria, ao contrário, que a ira renovada na Praça Tahrir demonstra que o abismo entre os egípcios seculares e aqueles que consideram a fé islâmica central para sua política é grande demais para superar e deve ser arbitrada pelas Forças Armadas. A autocracia de alguma espécie é inevitável porque a democracia é perigosa demais e o islamismo é incompatível com os valores liberais.

Eu escolho a interpretação positiva por vários motivos. Estive na Praça Tahrir durante mais de duas semanas em fevereiro e saí convencido da civilidade que corre fundo na cultura egípcia. O Egito teve 40 anos de paz, tem uma classe média substancial e um exército profissional sobre o qual os EUA compraram uma considerável influência. O islamismo extremista está presente nas margens da sociedade, mas a fraternidade muçulmana em sua grande maioria quer jogar o jogo democrático. Não é por acaso que ela entrou na eleição como Partido Liberdade e Justiça, lembrando o Partido Justiça e Desenvolvimento que governa a Turquia -um movimento religioso de centro-direita, mas não um grupo fanático.

Mas a inquietação sobre o islamismo é profunda no Egito e está claro nesta altura que os militares exageraram a mão. Uma transição para o regime civil que deveria levar seis meses gradualmente se estendeu. Além disso, os militares deram fortes sinais de que querem controlar esse processo de minar a vontade democrática dos egípcios. Mas sua autoridade é restrita, como fica evidente em uma nova tentativa de abrandar a raiva garantindo que as eleições presidenciais serão realizadas em junho de 2012, e não em 2013 como parecia provável.

Essa concessão talvez não seja suficiente. A SCAF pode ter de abandonar seu papel de supervisor se o Egito quiser avançar, dando lugar a algum tipo de “governo de resgate nacional” civil, como propôs o candidato presidencial Mohamed ElBaradei. Minha sensação é de que os EUA, mesmo conhecendo os riscos, estarão empurrando gentilmente nessa direção. O governo Obama apostou muito em uma genuína mudança democrática no Egito. Como disse Hillary Clinton recentemente: “A sugestão de que muçulmanos fiéis não podem prosperar em uma democracia é insultuosa, perigosa e errada”.

Sim, é – mas existem muitas pessoas fortemente investidas em provar o contrário, incluindo todos os perdedores com a demissão de Mubarak. A batalha que hoje se desenrola é no fundo sobre essa mesma questão: a compatibilidade do islã com a modernidade e um governo aberto, responsável por seus atos.

Eu não acho que é preciso olhar muito além da Turquia para saber que essa compatibilidade existe. Como observou Marina Ottaway, da Fundação Carnegie, “deixar o processo democrático formal se desenrolar pode ou não levar a um sistema político baseado em valores democráticos também. Bloquear o processo democrático em nome da democracia, porém, certamente levará a um resultado autoritário”.

O confronto egípcio é uma condição inevitável do possível sucesso da Primavera Árabe – e as forças democráticas, embora fraturadas, têm a prevalência.

 

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[ publicado no caderno do ‘The New York Times’ na Folha de São Paulo em 28/11/2011 ]

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