Morrer em Łódź

Neste agosto de 2019 fui à Polônia participar de um encontro da família de minha mãe, descendentes de antigos habitantes e sobreviventes do gueto da cidade de Lodz (Łódź), liquidado pelos nazistas 75 anos atrás. Dos 200 mil judeus confinados em quatro quilômetros quadrados e forçados a trabalhar como escravos desde 1942, menos de 10 mil conseguiram escapar. Todos os demais morreram de fome, doenças, execuções, nas câmaras de gás e nos fornos crematórios de Chelmno e Auschwitz.

Uma pequena tragédia, dentro dos horrores do extermínio programado de 6 milhões de judeus, dos quais 500 mil no gueto de Varsóvia, sem falar nas dezenas de milhões de mortos na União Soviética, na China e em outros países na 2.ª Guerra. Mas cada tragédia, com suas histórias de resistência, morte e sobrevivência, que atingem a cada pessoa e cada família, é única e incomensurável, e precisa ser sempre relembrada para entender o que aconteceu e evitar sua repetição.

LODZ 1940-1943

Em 1961, escrevendo sobre o julgamento de Adolph Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt criou uma grande controvérsia ao falar sobre a “banalidade do mal”, a maneira rotineira e burocrática como Eichmann e, por extensão, o governo nazista administravam a máquina de extermínio, desprovidos aparentemente de qualquer sensibilidade ou motivação de ódio, simplesmente “obedecendo ordens”. Para seus críticos, essa interpretação era inaceitável, porque de alguma forma eximia os nazistas de culpa e responsabilidade por suas atrocidades, pelas quais deveriam ser condenados e punidos.

Penso que, ao contrário, Hannah Arendt falava de uma culpa muito mais profunda e perturbadora, que é a da normalização da violência, que traz o problema da responsabilidade muito mais perto de cada um de nós do que gostaríamos de reconhecer. Em graus diferentes, todos, de alguma maneira, nos insensibilizamos com os absurdos e tragédias que presenciamos no dia a dia, ou que nos chegam a cada momento pelos noticiários, por conformismo ou simplesmente para continuar sobrevivendo. Em vez de uma humanidade dividida entre monstros morais, por um lado, e justos e inocentes, por outro, o que temos são seres humanos imperfeitos que se adaptam às circunstâncias em que vivem e podem ser capazes, em situações extremas, tanto de ações terríveis quanto de comportamentos éticos, heroicos e moralmente íntegros. Será que, por isso, somos todos culpados, ou todos inocentes?

Existem duas perguntas que surgem aqui, a de por que esses comportamentos violentos e destrutivos crescem e ganham raízes em determinados momentos, e a da conformidade de pessoas que não pensam ou agem da mesma maneira, mas se tornam coniventes.

Uma das grandes questões sobre a 2.ª Guerra é como a Alemanha, até então um país tão proeminente na ciência, na cultura e na filosofia, chegou a esses extremos, com o apoio ou ao menos a passividade de grande parte de sua população. Uma das explicações é a crise econômica e institucional dos anos 20, que levou à polarização crescente da política e abriu espaço para um demagogo que, prometendo um futuro de grandeza, dava voz aos sentimentos de raiva e frustração da população, liberando os preconceitos e estimulando o ataque a um suposto inimigo bem próximo e indefeso, os judeus. O culto à violência, a grosseria, a falta de limites e o anti-intelectualismo dos nazistas eram legitimados, ainda, por toda uma corrente de filósofos e ensaístas que elaboravam ideologias autoritárias, militaristas, nacionalistas, populistas e racistas, que foram tornando o nazismo e o antissemitismo cada vez mais “respeitáveis” e aceitáveis.

Era uma aceitação limitada, e muito foi escrito sobre o desprezo dos generais alemães, de origem aristocrática, pelo oficial subalterno que chegara ao poder, e que tinham a ilusão de poder controlar. Acabou preponderando, no entanto, o pragmatismo, não só dos militares, mas de empresários e muitos intelectuais, com triste destaque para o filósofo Martin Heidegger. Hitler estava no poder, encarnava a vontade do povo alemão, era uma oportunidade para a economia crescer e conquistar novos territórios, e era melhor fechar os olhos para detalhes desagradáveis, como o extermínio dos judeus, homossexuais, ciganos e opositores, e ficar de seu lado.

Em Lodz, a versão trágica do pragmatismo foi o curto reinado de Chaim Rumkowski, judeu designado pelos alemães como presidente do Conselho Administrativo – o Judenrat – e comandante do gueto. Rum-kowski fez do gueto uma fábrica de suprimentos de guerra, escravizando a população, e governou com mão de ferro, ajudado por uma polícia judaica que reprimia com violência as tentativas de resistência e selecionava pessoas para os campos de extermínio, ao mesmo tempo que garantia para seu grupo a comida, os espaços e as condições mínimas de sobrevivência que eram negados aos demais. A justificativa era que, colaborando, poderiam livrar mais gente do extermínio, e sobreviver. De fato, o gueto de Lodz durou um ano mais que o de Varsóvia, e Rumkowski e sua família foram dos últimos a ser enviados para os fornos crematórios, em 1944.

No gueto de Varsóvia, no início Adam Czerniakow também tentou colaborar, mas acabou se suicidando quando os alemães ordenaram o aumento do número de deportados. Um ano depois, os habitantes do gueto se insurgiram, e foram massacrados pelas tropas da SS em 1943.

Em Łódź, como em Varsóvia, a situação era extrema, a máquina de extermínio não se detinha e a morte era inevitável. Mesmo assim, restava ainda a opção de cada um entre o conformismo e a rebelião, mesmo que à custa da própria vida, de qualquer forma, efêmera.

Eichmann e Rumkowski não eram somente peças de uma engrenagem, tinham escolhas que poderiam fazer e não fizeram, e são essas escolhas, quando exercidas, que ainda nos permitem manter esperança na humanidade.

 

[ por Simon Schwartman é sociólogo, mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro  (blog) | Publicado em O Estado de São Paulo, 13 de setembro de 2019 ]

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