Anexação nos tempos de Corona

Por que os israelenses não estão protestando contra a cláusula de anexação no acordo para a nova coalizão? Eles não percebem que a anexação irá mover Israel em direção a um apartheid ou a um status binacional, ferindo mortalmente o sionismo?

A agenda da população israelense está tomada pelo que aparentemente considera como temas mais urgentes. E uma grande parte parece apoiar ou pelo menos concordar com a anexação por razões ideológicas.

Por favor explique, começando pelas questões urgentes.

A Anexação de partes da Cisjordânia que não são designadas pelo Plano Trump para um Estado Palestino está especificada no acordo de coalizão Likud-Azul e Branco. As modalidades de anexação devem ser deliberadas pelo governo a partir do 1º de julho.

No momento em que este texto está sendo escrito, em 4|5, não há governo. As especificidades do acordo desta coalizão bizarra estão sendo deliberada – transmitida ao vivo pela TV à nação – por uma configuração sem precedentes de 11 (de um total de 15) juízes da Suprema Corte de Justiça. O acordo é atado ao que pode ser chamado de disposições inconstitucionais tais como “primeiro-ministro alternativo”, um mandato do Parlamento diminuído para três anos, e um congelamento de seis meses nas nomeações para segurança de alto nível e serviços civis, qualquer uma dessas podendo ser desautorizadas pela Suprema Corte. Em 3 de maio, a Suprema Corte ouviu apelos contra a própria noção de que Benjamin Netanyahu, que foi indiciado em três processos por corrupção, poderia servir como primeiro-ministro.

A Suprema Corte irá julgar estas questões até 5ª feira, 7|5. Quinta também é o último dia em que o Knesset pode aprovar uma nova coalizão por uma maioria absoluta de pelo menos 61 votos. No momento em que escrevo, ninguém sabe se alguma dessas provisões será anulada. Não se sabe como o Likud e o Azul e Branco responderão às decisões da Corte. É suficiente que qualquer das partes declare nulo o acordo de coalizão para mandar o país para um 4º round de eleições em 90 dias.

É bem mais provável que o Likud, e não o Azul e Branco, reaja a uma decisão da Suprema Corte para anular o acordo saindo dele. Pesquisas atuais mostram que em novas eleições o Likud e seus aliados religiosos de direita ganhariam facilmente uma maioria de 61 ou mais mandatos. O Azul e Branco, que apostou seu futuro neste acordo, mas violou suas principais promessas de campanha para fazê-lo, iria murchar, fragmentar ou desaparecer.

De fato, do jeito que as coisas estão, Likud e Netanyahu, com seus índices de aprovação subindo, podem estar procurando uma desculpa para cair fora de um acordo que demanda que Netanyahu se mude da residência oficial do primeiro-ministro em Jerusalém em 18 meses. Assumindo, claro, que a Suprema Corte decida no fim desta semana que um deputado do Knesset indiciado possa servir como primeiro-ministro.

Então, quais as probabilidades?

Agora em 4|5, eu diria que há 50% de chance de novas eleições em vez de uma nova coalizão de governo de emergência. E novas eleições quase certamente significam nenhuma anexação em julho.

E o covid-19? O vírus é uma questão urgente que ofusca a anexação: Por que os índices de aprovação de Netanyahu e do Likud estão subindo?

Por uma porção de razões relacionadas ao corona. Primeira, as frequentes aparições de Netanyahu na mídia eletrônica têm, pelo menos até agora, focalizado em perspectivas assustadoras da pandemia por um lado e, pelo outro, em sucessos pessoais do ministro no combate ao vírus, explorando seus “únicos” contatos internacionais, engajando a comunidade de segurança e lutando por equipamentos de proteção e testes, Mais recentemente, Netanyahu tomou o crédito por estatísticas extremamente boas e retorno em fases à normalidade. Apesar de muitos protestos, os israelenses estão perfeitamente cientes de que seu país está na mesma classe de Coréia do Sul e Dinamarca – não do Reino Unido ou EUA.

O ponto-chave aqui é que, numa era de incerteza e medo, a população geral percebe que este primeiro-ministro está mantendo os israelenses relativamente seguros, ao mesmo tempo que ainda bombardeiam suprimentos de armas iranianas e do Hezbollah na Síria. Até está ajudando palestinos em Gaza e na Cisjordânia a combater o vírus. Se os palestinos não estão protestando contra a anexação neste era do corona, por que deveríamos nós israelenses?

Note que diariamente os três noticiários da TV aberta em Israel, por dois meses, abriram 40 minutos de notícias relativas ao corona, dedicando poucos minutos a questões política e de segurança. Isso reflete o humor do público.

Tanto para assuntos urgentes. Mas mesmo que não aconteça agora, a anexação deve retornar à agenda no futuro próximo se as estrelas se alinharem para Netanyahu e Trump. Quais as razões ideológicas de os israelenses não estarem manifestando? Eles não estão preocupados com que o Estado de Israel deixe de ser democrático e judeu, por causa da anexação?

Como em vários outros países democráticos, a população em Israel se tornou crescentemente nacionalista e religiosa e menos sintonizada com o domínio da lei nos últimos anos. Desta forma, líderes são eleitos tendendo para agendas ultra-nacionalistas e tentam ignorar o domínio da lei. Movimentos religiosos messiânicos estão ganhando força e popularidade.

Por que isto está acontecendo no Brasil, Hungria e EUA é complexo. Cada país tem suas circunstâncias particulares.  E em cada país, as manifestações políticas de ultra-nacionalismo são diferentes. No Brasil eles ameaçam a Amazônia. Na Hungria, o parlamento cedeu poder ao primeiro-ministro. Nos EUA, assistimos ao aumento da anti-imigração e mesmo regulamentos antiaborto ostensivamente endossados pela guerra contra o covid-19.

Em Israel, o ultra-nacionalismo tem sido nutrido pelo abjeto fracasso do processo de paz com os palestinos e a crescente prontidão de países árabes –  sentindo-se fartos dos palestinos e ameaçados pelo Irã –  a fazer causa comum com Israel, apesar da questão palestina. Obviamente, a direita política israelense contribuiu para esta dinâmica, mas também o fizeram os palestinos. Eles estão agora irremediavelmente fragmentados, territorialmente e politicamente e a liderança da Cisjordânia está paralisada. Mas ainda persistem em fazer demandas a Israel, como o direito de retorno, que são percebidas como extremas e desatualizadas.

A resposta de Israel, aumentada [egged] por Trump e encolhida [shrugged off] por muitos países árabes, está se tornando territorialmente gananciosa (anexação) e mais extrema no nível judaico religioso (orações no Monte do Templo, assentamento em lugares de significado bíblico no coração da Cisjordânia).

A resposta de Israel também está imitando tanto a tendência global como o caráter não-democrático dos próprios países árabes: “não são todos que precisam ou se adaptam a democracia”; “autonomia pode ser suficiente para os palestinos”; “nossas necessidades prevalecem”. Lamentavelmente, é aí que a maioria da população israelense se situa politicamente hoje.

Finalmente, o tempo é a chave: Netanyahu teme condenação e prisão, portanto quer deixar como legado uma Grande Terra de Israel, enquanto pode; Trump pode ser um presidente por um único mandato. O significado dessas realidades é que anexações por Israel, não-democráticas e racistas, só têm esta única chance. Para o crescente número de israelenses para quem o sionismo passou a significar um Israel mais judeu e menos democrático, a hora é esta.

Assumindo que a coalizão Likud-Azul e Branco seja ratificada pelo Knesset nesta semana e que Netanyahu a chefie, quais desenvolvimentos e atores poderiam evitar a anexação em julho ou ao menos reduzir sua dimensão?

Israel enfrentará ameaças de sanções internacionais caso anexe? Como a questão influirá nas eleições presidenciais americanas? Irá o Azul e Branco arriscar deixar a coalizão e cometer suicídio político se exigir uma anexação bem limitada (como o Bloco Etzion) e o bloco do Likud insistir em anexar 30% da Cisjordânia? Será que o mundo árabe, que até agora mostrou relativa indiferença, ameaçará a quebra de relações diplomáticas e semi-clandestinas com Israel? A anexação provocará uma revolta palestina, uma intifada?

Por que não há respostas para essas questões? O covid-19 explica esta visível incapacidade de prever os meros próximos dois meses?

Até certo ponto, sim. Devido ao vírus, a maior parte do mundo está capturada no que, em termos de inteligência, é uma “situação revolucionária”, significando uma dinâmica na qual é impossível predizer o que acontecerá a seguir.

Quando aplicado, digamos, nosso entendimento de inteligência, a uma genuína revolução, como no Egito em 2011 ou Irã em 1979, ou a uma guerra civil caótica como na Síria, Iemen e Líbia de hoje, o termo “situação revolucionária” significa que não conseguimos fazer previsões confiáveis. Afinal de contas, os próprios atores principais não têm certeza do que farão amanhã: eles são superados pelos eventos. Tudo que podemos fazer é apontar para cenários alternativos baseados em variáveis múltiplas.

Quando aplicado à atual pandemia, o termo “situação revolucionária”, significa que nenhum de nós tem certeza do que o vírus fará amanhã. No curso do tempo, a ciência nos dirá se os sobreviventes do vírus terão imunidade a longo prazo ou mesmo no curto prazo. Se crianças podem infectar outros ou não. Se haverá um coquetel de remédios que possa curar um paciente. Se poderemos todos tomar vacinas anti-covid 19. Hoje não sabem nada disso, o que perturba profundamente a sociedade.

Enquanto isto, somos inundados por predições sobre a natureza de nossas vidas na era pós-virus. Estudo à distância? Trabalho virtual? Massas demandando deixar áreas densamente povoadas? Desglobalização? Altas tensões EUA-China? Dez anos de recessão?  Vôos mais caros?  Todas essas questões são especulativas.  Ninguém sabe as respostas.

De fato, novamente em terminologia de inteligência, com relação ao corona já existem muitas coisas que aparentemente nós nem sabemos que não sabemos. Isto também é extremamente inquietante.

Agora analise a questão da anexação da Cisjordânia – já irremediavelmente complicada pelo quadro ideológico-político-religioso-messiânico de Israel – nesta atmosfera global de incerteza.

 

[ por Yossi Alpher | publicado em 04|05|2020 pelo Americans for Peace Now | traduzido pelos Amigos Brasileiros do PAZ AGORA  ]


  • Yossi Alpher é um analista de segurança independente. Foi diretor do Jaffee Center for Strategic Studies na Universidade de Tel Aviv e oficial sênior do Mossad. As visões e posições aqui expressas são do autor e não representam as opiniões da APN nem dos Amigos Brasileiros do PAZ AGORA, que as traduziu para alimentar o diálogo.

 

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