Através do Abismo | David Grossman

 

Através do Abismo

 

Após quinze anos, durante os quais a dor é aguda e terrível, chegam anos em que a ferida começa a ser coberta por camadas de realidade e pelo dia-a-dia. Existem coisas que precisam ser feitas. Existe trabalho, há relações com a família e amigos. Existem todas as obrigações da vida e também as que nascem da família enlutada.  Há até distrações da dor. Por alguns momentos aqui e ali, parece que esquecemos o que aconteceu.

Lentamente, em meio a negociações sem fim com a vida, emerge um caminho para viver com a perda.

Através de nossa ferida, abaixo do nosso abismo privado, a realidade parece espalhar um tecido flexível e tênue e nós, os enlutados, aprendemos como avançar sobre esse tecido, esticado sobre o abismo,

E avançamos sobre ele esplendidamente. Heroicamente, pode-se dizer.

Quase todas as famílias enlutadas que conheço vivem heroicamente.

Sim, vivemos nossas vidas com toda nossa vontade. Cumprimos todas nossas obrigações, na família e no trabalho e nos nossos estudos e em todas as esferas de nossa vida. Muitos de nós ajudam gente que precisa de ajuda, somos ativos, envolvidos e criativos.

Mas a verdade é que não existe tecido sobre o abismo.

Fingimos que ele está lá – mas não está.

Todas as ações boas e importante que fizemos para ficar acima do abismo não são capazes de desfazer o abismo e a força com que ele nos afeta.

Eu digo “abismo” porque não há outra palavra para descrever isto. O vácuo absoluto, a sucção da morte.

É impossível de descrever, impossível de compreender.

Porque no lugar onde a morte está, não há lógica.  A morte, e especialmente a morte de uma pessoa jovem, voa no rosto da nossa lógica familiar. Não consigo realmente entender o fato de que Uri, meu filho, se foi. É simplesmente incompreensível. Aos meus olhos, nos olhos do pai, eu era para ele, aos olhos de tudo eu penso sobre paternidade e maternidade, não faz sentido.

No sentido mais literal – é inaceitável.

E mesmo que eu saiba do fato, o fato da sua morte, eu realmente não o conheço. Não da forma que conheço os outros fatos do meu mundo.  Afinal, este fato está selado, impermeável. Seu conteúdo torna-se conhecido para mim por uma fração de segundo, e depois novamente se estilhaça em cacos de incompreensão.

Às vezes penso – se tentássemos realmente entender o que aconteceu com nossos entes queridos, se tocássemos mesmo que por um instante, com todo nosso ser, o coração daquele fato: se nos permitíssemos espiar dentro dele numa forma que não nos permitisse nenhuma defesa contra ele – o abismo nos engoliria numa batida do coração.

Nós também seremos transformados em nada.

Esta talvez seja a maior tarefa, nossa tarefa de vida, daqueles que experienciaram uma perda como esta: aprender como ir adiante sobre o tecido que nos protege de cair no abismo,

E saber que não há nenhum tecido nos protegendo.

E mesmo assim, caminhar adiante sobre ele.

E cair seguidamente,

E mesmo assim, seguir adiante.

E mesmo em meio à queda,

E dentro do próprio abismo,

Caminhar.

 

[ por David Grossman | publicado no Haaretz | 14|04|2021 – traduzido por Moisés Storch para o PAZ AGORA|BR ]

 

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