Yom Hashoá | Por Que Nos Odeiam?

O Espelho da Shoá

Hoje recordamos em todo mundo as vítimas da Shoá e nos obrigamos a permanecer alertas para que algo assim não volte a acontecer. Não obstante, esta ocasião supõe também uma oportunidade para explorar as razões pelas quais a Shoá segue presente, viva e atual.

A Shoá – sua concepção, sua execução e sua eficácia  – é um trauma, um cataclismo que atravessou gerações e que formou o mundo em que vivemos. Nossas democracias e nosso sistema de relações internacionais se erigem sobre as cinzas dos milhões de vítimas – não só sobre os seis milhões de judeus – que foram assassinados por serem diferentes, por não caberem na ordem social pura desenhada pelo nacional-socialismo alemão. Neste sentido – e este aspecto é essencial para tratar de entender a tragédia – a Shoá é um dos fatos definidores do século passado e o maio de nossos medos como cidadãos livres.

Comprender por que a Shoá é uma tragédia intergeneracional, ainda não  cicatrizada, é um exercício arriscado devido à dificuldade pessoal e social para assumir tanta barbárie certificada. A capacidade dos historiadores resulta insuficiente quando tratam de explicar o ocorrido em Auschwitz. Em muitos aspectos, a Shoá segue sendo um evento misterioso; não pelos fatos,  amplamente documentados, mas pelas causas. Todavia, historiadores, filósofos, sociólogos, politólogos e teólogos seguem fazendo-se as mesmas perguntas:  Como pôde acontecer? Como uma sociedade tão cultivada e avançada como a alemã pôde ser protagonista ativa e entusiasta na aniquilação de milhões de judeus?

Una teoria extendida sustenta a Shoá como resultado lógico de séculos de antissemitismo na Europa. Para que a gente normal possa odiar uma vítima, é necessário primeiro estigmatizá-la e os judeus carregavam sobre seus ombros séculos de falsos mitos que tornaram sua defenestração e eliminação justificáveis. De fato, muitas leis nazistas antijudias são meras atualizações de leis anteriores que impérios, reinos e a própria Igreja haviam promulgado anteriormente. Já no ano 535, no Concílio de Clermont, se proibiu os judeus de ocuparem cargos públicos, proibição também incluída na Lei para Restabelecimento do Funcionalismo Civil Profissional de 1933; ou em 1215, no Concílio de Letrán, copiando a legislação do Califa Omar, obrigou-se os judeus a marcar sua roupa com uma insignia, o mesmo que fez o  Decreto de 1 de setembro de 1941 aplicável a todos os territórios conquistados pela Alemanha. Nos julgamentos de Nuremberg, Julius Streicher justificou o antissemitismo do Der Stürmer escudando-se no livro de Martim Lutero ‘Os judeus e suas mentiras’.

Essa tradição milenar de ódio aos judeus, combinada com o racionalismo e os avanços científicos da modernidade, desembocaram na definição, expropriação, concentração e o extermínio de milhões de judeus em toda Europa. De acordo com esta teoria, o processo de exterminio de um povo, o judeu, declarado culpado durante quase dois mil anos, seria, cedo ou tarde, inevitável.

O antissemitismo segue provocando vítimas e os judeus seguem sendo ameaçados e assassinados pelo fato de sê-lo.  Ainda que esta teoria encaixe muitas peças, resulta insuficiente para explicar por que a Shoá suscita interesse, medo e comoção em partes iguais.

De acordo com a obra monumental e de referência sobre a Shoá, ‘A Destruição dos Judeus Europeus’, de Raul Hilberg, se os nazistas puderam assassinar tanta gente repartida por tantos países em tão pouco tempo foi, precisamente, porque instrumentalizaram a matança através de um sofisticado processo burocrático no qual participaram funcionários, militares e empresas. Nesta construção humana, nesta vontade de fabricar cadáveres da mesma maneira que se fabricam  talheres de cozinha, através dessa longa e anônima cadeia de pessoas implicadas, reside a singularidade da Shoá. Aqui radica precisamente o medo que gera a Shoá e o motivo essencial que nos faz tomar todas as precauções possíveis para evitar que volte a se repetir: somos capazes de idealizá-lo, somos capaces de realizá-lo e portanto de repeti-lo.

Desta forma, a Shoá é hoje um horrível recordatório que assalta nossas consciências, que nos mostra a condição humana em toda sua dimensão. É difícil encontrar exemplos anteriores na História onde se documente e se difunda, de forma tão detalhada e universal, todo o sofrimento padecido pelas vítimas.

Os seres humanos tendemos a esterilizar a história para fazê-la mais suportável. Lemos sobre batalhas e gestos militares do passado, mas encontramos pouco sobre as vítimas. Assim corremos um véu sobre nossas vergonhas,

Sobre a Shoá, por sua vez, sabemos muito. Nos consternamos ante os primeiros métodos de gaseamento de judeus, asfixiados em caminhonetas em movimento com o monóxido de carbono expelido pelo escapamento, passamos noites em claro recordando os experimentos científicos realizados por Josef Méngele, nos petrificamos ao ver as imagens de cadáveres famélicos empilhados como escombros. Algo de nós ficou nos campos de concentração que tivemos ocasião de visitar. A Shoá segue presente porque sabemos muito dela, e o que sabemos nos da medo.

A Shoá não é a única mancha no expediente da Humanidade, mas é uma mancha especialmente vergonhosa porque o aparato nazista – e a cumplicidade extendida de muitos alemães,  junto a milhares de estrangeiros de outros países conquistados pelo Terceiro Reich – puseram todo seu conhecimento e todos seus avanços científicos, mecânicos, sociais e políticos para um fim aterrador: apagar da condição humana um grupo pelo fato de serem diferentes.

A normalidade no processo foi estremecedora: Rudolf Höss, que dirigiu o extermínio de 400.000 judeus húngaros em Auschwitz durante o verão de 1944, nunca falou com sua esposa sobre seu trabalho. Os perpetradores eram gente ordinaria, como nós. Isto é aterrador.

É tão assustador pensar que pais de familia foram capazes de abater a bala crianças agarradas ao ventre de suas mães ao sairem das câmaras de gás, é tão espantoso constatar que seres humanos foram aniquilados com desinfetante como se fossem uma praga, é tão paralisante sequer supor o número de pessoas que trabalharam e se beneficiaram em um processo tão sofisticado de exterminio…

A este respeito, a reação ante a Shoá não é unánime: alguns reagem ocultando. Não admitem nem uma única incorreção quando se fala do assunto.  A todos assusta, porque sabem que a Shoá prova que o homem não tem limites na hora de levantar e infligir sofrimiento e morte. A todos causa medo, em suma, não porque as próximas vítimas poderiam ser eles, mas também porque poderiam ser os próximos verdugos.

Por isto temos a pele tão fina quando se fala da Shoá, por isso saltam todos os alarmes quando algum grupo de exaltados culpabiliza um coletivo, porisso insistimos tanto na convivência e no respeito, e, porisso, o nazismo é hoje um arquétipo do horror, um exemplo ao qual acudimos – e do qual abusamos – para afugentar este fantasma que segue rondando pelas costuras dos nossos sistemas garantistas.

A Shoá é um espelho que nos ensina o pior de nós mesmos.  Por isto ela assusta e continua sendo atual.

Por Que Nos Odeiam?

Não é a primeira vez que surge esta pergunta. Tampouco será a última. Cada geração a refaz e cada vez as respostas são diferentes. É que o tema tem infinitas variações; muda constantemente e ao mesmo tempo se mantem igual em sua obstinação, em sua irracionalidade, em seu primitivismo.

É fato que – segundo me contavam meus pais -, milhões de cidadãos poloneses nos odiavam, nos odeiam e continuarão nos odiado, façamos o que façamos. Nos odiavam antes de o Estado judeu ter sido fundado e continuarão nos odiando ainda que o Estado judeu desaparaça, ainda que a maioria dos judeus do mundo se assimilem, ainda que deixemos de ser um fator visível no cenário internacional

Há alguns anos – e se referindo ao mundo em geral – o escritor israelense A. B. Yehoshua publicou um artigo de lucidez dramática chamado “Por que nos odeiam tanto”?

“Esta vez não falo dos palestinos. Seu conflito conosco é íntimo, concreto e tem um efeito direto sobre nossas vidas. Sem entrar no tema de ‘quem tem razão’ é óbvio que têm razões muito pessoais para não desejarem nossa presença aqui. Nós sabemos que eventualmente haverá uma solução. Será difícil e as páginas do acordo estarão manchadas de sangre, suor e lágrimas. Até então. é uma guerra que pelo menos se pode entender ainda que ninguém em pleno juízo aceitará os meios utilizados nela”.

“São os outros que não posso comprender. Por que Hassan Nasrallah junto com milhares de seus partidários dedica sua vida, seus conhecimentos, o destino do Líbano, para lutar contra um Estado que nunca viu, cujo povo não conhece e com cujo exército não tem nenhuma razão válida para combater”.

“Por que as crianças do Irã, que nem sequer são capazes de localizar Israel no mapa, queimam sua bandeira nas praças de suas cidades e se oferecem suicidar para conseguir sua eliminação? Por que os intelectuais egípcios e jordanianos agitam as massas ignorantes contra os acordos de paz, mesmo que saibam que sua anulação os fará retroceder pelo menos vinte anos para trás? Por que a Siria prefere ser un patético país destruido do Quarto Mundo para ter o duvidoso privilégio de financiar organizações terroristas que podem se converter numa ameaça à sua própria existência? Por que nos odeiam tanto na Polonia, Áustria, Hungria, Nova Zelândia, Irlanda, Arábia Saudita ou Sudão? O que lhes fizemos? Em que medida influímos na vida deles? O que sabem de nós”?

Lamentavelmente há demasiadas respostas e são atrozmente lógicas. Para começar, cada religião necessita um “outro” que adora outro Deus para demonstrar que o seu é melhor e único. Tanto o cristianismo como o Islã tem seus fundamentos na Bíblia hebraica, mas ninguém é pior em matéria de reconhecimento de dúvidas que a religião organizada. O cristianismo fez o povo judeu pagar com sangue durante séculos seu não reconhecimento da “dívida”, enquanto o Islã  simplemente se aproprioui do legado hebraico e o transformou substancialmente. Como o observou sagazmente o professor Shlomo Ben-Ami: “Moisés era um legislador, Jesus um pregador e Maomé um guerreiro”.

Tanto o cristianismo como o Islã foram, desde suas origens, religiões expansionistas e conquistadoras e seu sentido de superioridade sobre as rivais não variou durante muito tempo. Sua divisão o mundo entre fiéis e infiéis é tão taxativa hoje como foi nos primeiros séculos de existência.

Mas enquanto o judaísmo e o cristianismo tiveram que fazer frente aos embates da grande revolução da secularização e precisaram enfrentar vigorosas correntes dissidentes em seu seio, as divisões no Islã tenderam para uma maior rigidez e não a posições mais tolerantes.

Não houve nada comparável à Reforma cristã no Islã, nem nada semelhante às  correntes conservadora e reformista na religião judia. Pelo contrário, simultâneamente à Revolução Francesa florescia a corrente mais xenófoba, intolerante e exclusivista do Islã, o wahabismo. A associação desta tendência com o governo da Arábia Saudita teve uma consequência tão trágica como paradoxal.

A grande riqueza petrolífera saudita financiou a construção de mesquitas e a difusão por todo o mundo desta versão extremista e intolerante do islã. A isso somou-se a grande frustração pelo atraso dos países muçulmanos frente à modernidade européia e norteamericana e sua incapacidade de incorporar-se à sociedade globalizada e interconectada do século XXI, o que foi exaustivamente documentado em um informe da ONU em 2002.

Se dirá: isto explica o ódio ao Ocidente. Mas, por que esse ódio está dirigido contra Israel e o povo judeu em primeiro lugar? Muito simples: porque na época de Maomé o Ocidente não existia como existe hoje em dia . E existiam os judeus, dos quais consta no Alcorão que rechaçaram o profeta e o combateram. Sem dúvida, também há passagens favoráveis aos judeus no Alcorão, que de alguma maneira privilegia as religiões do Livr0, judeus e cristãos, por cima de outros “infiéis”. Mas as leituras dos livros sagrados em todas as religiões são algo muito seletivo, e tanto no Novo Testamento como no Alcorão há suficientes citações antissemitas para quem queira usá-las.

Mas há outro motivo fundamental pelo qual o ódio a Israel tem raízes psicológicas tão fundas. A visão de mundo do Islã, por exemplo, é atemporal e desde seu ponto de vista as terras que foram conquistadas por ele uma vez não devem passar a mãos de infiéis. A visão dos muçulmanos de Israel não é a de um povo que veio recuperar sua terra, mas a de estrangeiros que, com  falsos pretextos históricos, vieram roubar sua terra de um povo muçulmano. E para o cúmulo, os muçulmanos viveram a humilhação de perder várias guerras contra um pequeno povo que veio desafia a grande “umma” muçulmana.

Explicar isto de manera racional, significava enfrentar algunas duras verdades, o que resulta demasiado traumático.

Por isto, a demonização do inimigo, tanto na Europa como no Oriente Medio, é a forma ideal para evitar a confrontação com os verdadeiros problemas. “Os judeus têm um poder monstruoso”. “Dominam a política dos países ocidentais”. “São os culpados pelos ataque às Torres Gêmeas e por todos males que afligem a  comunidade internacional”. Cada enfrentamento inter-europeu ou inter-árabe tem uma explicação conspirativa e “o culpado sempre é o onipresente inimigo judeu”.

Reduzir-se-ia o ódio a Israel em particular e aos judeus em geral se finalmente se chegasse a um acordo para solucionar o problema palestino? Dificilmanete.

Tanto no cristianismo como no islã existe una tendência a alinhar-se com as correntes mais extremistas que sempre pretendem ser as mais fiéis às “religiões monoteistas autênticas”, representativas do verdadeiro pensamento de Jesús ou Maomé.

Esta presumida luta pela autenticidade, que também na realidade atual constitui a resistência de uma mentalidade pré-moderna contra una modernidade que transforma dramáticamente o estilo de vida da Humanidade, não é apenas um problema que enfrentam Israel, o povo judeu e a relação com a Shoá. De fato constitui o maior desafio à civilização contemporânea.

[ por Alberto Mazor | publicado em 07|04|21 pelo PAZAHORA.NET | traduzido pelos Amigos Brasileiros do PAZAGORA | pazagora.org ]

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