Ben-Gurion não terminou o serviço

[ por B. Michael | Haaretz | 26|10|21 | traduzido por José Manasseh Zagury]

Às vezes, até um vigarista deixa escapar uma verdade. Isso aconteceu com o deputado Betzalel Smotrich, na tribuna da Knesset, não faz muito tempo. Depois de descartar todo o carregamento de racismo do seu discurso, o que restou foi um pequeno núcleo contendo uma grande verdade. “Ben-Gurion”, disse ele sobre o primeiro primeiro-ministro de Israel, “não concluiu o serviço em 1948”.

Isso é verdade. Absolutamente verdade. Sem dúvida, no repugnante domínio objeto dos sonhos de Smotrich, ele fez até demais. Mas no trabalho de estabelecer um Estado e orientar o seu futuro, ele definitivamente não concluiu o serviço. De fato, ele fez uma besteira muito significativa. Em um momento decisivo, quando formava seu primeiro governo, na sua arrogância e excessiva autoconfiança, surpreendente cegueira histórica, considerações políticas mesquinhas e seu desejo de manter o partido Mapam (partido inicialmente marxista-sionista fundado em janeiro de 1948 e precursor do atual Meretz N.T.) fora de qualquer posição de poder, ele decidiu trazer para o governo a Frente Religiosa Unida, um partido guarda-chuva de todos os partidos religiosos.

Ben Gurion - o primeiro primeiro-ministro de Israel
Ben Gurion – o primeiro primeiro-ministro de Israel

Em outras palavras, Ben-Gurion escolheu deliberadamente dizer “não” à separação entre Estado e religião. Portanto, ele realmente não “terminou o serviço” e acabou elaborando um produto defeituoso e confuso. É um híbrido, meio democrático meio teocrático, que sofre de uma tendência inata a uma desordem bipolar. A primeira de nossas tragédias, que continua até hoje, veio rapidamente: contrariamente ao que foi prometido na Declaração da Independência, nenhuma Constituição foi adotada. Os partidos religiosos se opuseram e então a Constituição foi enterrada. Isso foi apenas o começo.

Depois, os religiosos estabeleceram seu próprio sistema escolar, um rabinato voraz e poderoso, um sistema de tribunais religiosos cujos juízes não têm nenhuma lealdade às leis do país, gerações de desocupados nas yeshivot bancados pelo governo e, o pior de tudo, controle total sobre as chaves para juntar-se ao povo judeu em Israel.

Assim, a democracia gradualmente se desvaneceu enquanto a teocracia se inflou.

E então veio a grande derrota da vitória de Israel na Guerra dos Seis Dias em 1967. O demônio da religião escapou de suas amarras e perdeu qualquer aparência de sanidade. A sabedoria de dois mil anos foi colocada de lado nas pedras do Muro das Lamentações e gerações de experiências foram atiradas sobre os túmulos dos mártires e lá apodreceram.

Garotos com hormônios reprimidos começaram a soltar seus impulsos para apressar a vinda do Messias e abusar de pessoas desamparadas. Uma gangue de rabinos embriagados pelo poder os apoiou e encorajou.

E assim nasceu o movimento de colonização Gush Emunim. Assim nasceu o judaísmo subterrâneo. Assim nasceu o sionismo religioso ultraortodoxo. Assim nasceu o assassinato de Yitzhak Rabin. Foi um assassinato “de acordo com a Halacha”. Um assassinato para santificar o nome de Deus. Quase um assassinato religioso.

Mesmo com o devido respeito à enorme habilidade para incitar demonstrada pela direita, por Benjamin Netaniahu e por toda a gentalha, o assassino Ygal Amir não era um de seus soldados da infantaria. Ele não obedecia a eles, mas tão somente aos rabinos e ao “din rodef” que eles decretaram – um acórdão sob a lei judaica que permite matar alguém que está a caminho de cometer um assassinato.Os seguidores de Ygal Amir na Knesset são sem dúvida uma desgraça. Mas o verdadeiro perigo não está nas pessoas que seguem seus passos, mas sim nas pessoas que direcionaram seu caminho – seus professores, seus pastores “espirituais”, os malignos rabinos do movimento de colonização.

Esses, vergonhosamente, ainda estão livres como os passarinhos. Nem um fio de seus cabelos foi atingido. Sem restrições, eles continuam a imundiçar suas bocas com abominações racistas, disseminando seu veneno, abusando do que sobrou de sanidade e iluminismo e criando mais e mais racistas devotos e ignorantes devorados pelo ódio.

Se Ben-Gurion tivesse “terminado o serviço em 1948” e separado apropriadamente Estado e religião, Israel seria hoje um lugar diferente. Seria um país com alguma chance de normalidade. Seria uma democracia sem partidos religiosos, com transporte público sete dias por semana, no qual Smotrich, Itamar Ben-Gvir, os rabinos venenosos e todos dessa laia, estariam ou fora da lei ou atrás das grades. Ben-Gurion não terminou o serviço e esta é a razão de termos chegado aonde estamos hoje. Da próxima vez temos que ser mais cuidadosos.

[ por B. Michael | Haaretz | 26|10|21 | traduzido por José Manasseh Zagury]

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