Netaniahu passou a perna em Gantz

Série de análises sobre o novo governo de Israel – Parte 3


Semana após semana, no meio da pandemia de coronavírus, o Primeiro-ministro Benjamin Netaniahu pediu por um governo emergencial de união para ajudar a lutar contra a crise. No dia 26 de março, seu adversário eleitoral por três vezes, Benny Gantz, atendeu o pedido e na noite de segunda-feira, depois de uma prolongada negociação vai-não-vai, os dois assinaram um acordo de coalizão de 41 cláusulas. Se o governo deles for aprovado pela Knesset nos próximos dias, como se espera, os 16 meses de impasse político serão finalmente rompidos e o país terá evitado a quarta rodada de eleições no meio da pandemia.

Pesquisas de opinião sugerem que a maior parte do público israelense está satisfeita com a possibilidade de finalmente ter um governo totalmente funcional, mas não acredita amplamente que o líder do Likud Netaniahu cumprirá a característica central do acordo – passar o posto de primeiro-ministro para Gantz após 18 meses dos 3 anos previstos para durar a coalizão. Há também crescentes críticas ao tamanho do governo entrante – inicialmente projetado para 32 ministros e ampliado para 36, com 16 vice-ministros, o que o torna o maior da história de Israel.

O outrora parceiro de Gantz, Yair Lapid, horrorizado pelo abandono da promessa três vezes feita de não participar de um governo com Netaniahu enquanto o primeiro-ministro estiver indiciado criminalmente, na terça-feira alegou também que a aliança permitirá a Netaniahu evadir a investigação de vários outros escândalos em potencial, que ela representa uma capitulação para a coerção dos ultra-ortodoxos, que vai enfraquecer ainda mais o estado de direito e a democracia e que não vai durar. Minutos depois, no seu próprio discurso, Gantz admitiu que sua parceria com Netaniahu está abaixo do ideal, mas reiterou sua convicção de que beneficia os interesses nacionais mais amplos de Israel.

Qual dos dois está certo? Gantz efetivamente negociou? Será que a Suprema Corte vai derrubar o acordo? Netaniahu realmente passará o poder? Segue uma tentativa de responder a essas e outras questões chaves.

POR QUE O GOVERNO SERÁ TÃO GRANDE?

Quando Gantz decidiu abandonar a principal reivindicação política do Kachol Lavan e iniciar as conversações com Netaniahu no final de março, ele estava numa posição de força relativa. Ele tinha sido recomendado para primeiro-ministro por 61 dos 120 deputados da Knesset e comandava um partido com 33 deputados. Então ele exigiu representação igual no governo para os seus aliados.

Sua reviravolta política, entretanto, custo a ele sua parceria com o Yesh Atid de Yair Lapid e parte do Telem de Moshe Ya’alon. Como eles foram para a oposição, seu Kachol Lavan ficou apenas com 15 deputados, reforçados por Zvi Hauser e Yoaz Hendel (ex-Telem e agora formando a facção Derech Eretz) e pelo Avodah de Amir Peretz e Itzik Shmuli, mas isso não impactou no princípio de número igual de cargos para o bloco de Netaniahu e o bloco de Gantz na coalizão.

Como Netaniahu queria evitar afastar um número grande de membros seniores de seu bloco de direita/ultra-ortodoxos, muitos dos quais eram ministros no governo que está saindo e não querem perder esse status, o acordo prevê um gabinete grande e custoso sem precedente.

Esse contorcionismo envolverá a criação de numerosos novos e reavivados ministérios, sem os quais Israel se virou até aqui, todos com seus próprios gabinetes, diretores-gerais e equipe de apoio, ao custo de centenas de milhões de shkalim – um gasto que inúmeros comentaristas chamaram de escandaloso e revoltante num momento de crise econômica, com o desemprego acima de 25% e crescendo.

Atraindo críticas adicionais, o acordo prevê residência oficial para o “primeiro-ministro alternativo” – o novo título que será concedido para Gantz nos primeiros 18 meses e para Netaniahu nos 18 meses seguintes – apesar de que Gantz tem insistido de que não deseja e não necessita e apesar de que a existência dessa cláusula foi negada repetidamente até que o acordo foi publicado na última segunda-feira.

ESSE É VERDADEIRAMENTE UM GOVERNO DE “EMERGÊNCIA”, COMO É CHAMADO NO ACORDO, ESTABELECIDO ANTES DE MAIS NADA PARA ENFRENTAR A PANDEMIA?

Bem, sim e não. O acordo prevê um governo de emergência por seis meses focado antes de mais nada na crise do COVID-19. Entretanto, o fato de que ele levou mais de três semanas para ser negociado – durante as quais Netaniahu conduziu uma resposta à pandemia geralmente elogiada, com o número nacional de mortos relativamente baixo – de alguma forma desmente a designação “emergência “.

Mais ainda, embora o acordo deixe de fora a introdução de legislação não ligada ao vírus por seis meses, há uma exceção para a questão da anexação da Cisjordânia. Netaniahu está livre para promover ações em direção à anexação unilateral, com base na visão “Paz para a Prosperidade” de Trump, a partir de 1 de julho.

O acordo prevê a extensão dos seis meses de “emergência” se acordado pelas partes; durante o período de emergência, eles deverão negociar a plataforma e os princípios da sua coalizão, para o período pós-emergência.

LAPID ACUSOU NA TERÇA-FEIRA QUE GANTZ SE RENDEU A NETANIAHU E AOS ULTRA-ORTODOXOS E MINOU A DEMOCRACIA E O ESTADO DE DIREITO. GANTZ INSISTE QUE NÃO É O CASO. QUEM ESTÁ CERTO?

O acordo congela grandes nomeações por seis meses – o que significa que não será nomeado o novo Chefe da Polícia, por exemplo, e que nomeações chaves na promotoria não serão feitas, deixando vários cargos de autoridades preenchidos por nomeações temporárias feitas pelo Ministro da Justiça de saída, fiel a Netaniahu, Amir Ohana. O lugar no painel de seleção de juízes até aqui ocupado por um membro da oposição, foi prometido a Hauser – um ex-secretário de gabinete de Netaniahu, de tendência direitista – essencialmente garantindo direito de veto na nomeação de juízes.

A proibição de promover leis importantes durante os seis primeiros meses da coalizão, limita a Knesset e provocou algumas do rio de petições contra o acordo encaminhadas à Suprema Corte. Bem como a previsão de reduzir o governo a três anos e a mudança no painel de nomeações de juízes.

Anos de esforços de Lapid e do chefe do Yisrael Beitenu, Avigdor Liberman, para aumentar o número de homens ultra-ortodoxos recrutados pelo exército e outras iniciativas de serviço nacional para as comunidades ultra-ortodoxas e árabes, muito provavelmente não avançarão no novo governo, já que o acordo prevê que as decisões sobre matérias relacionadas ao alistamento de Haredim serão tomadas pelo governo e não pela Knesset.

Os dois partidos ultra-ortodoxos, Shas e Yahadut Hatorah, manterão sua influência e suas vantagens na constelação do novo governo – com Yaakov Litzman do Yahadut Hatorah permanecendo no ministério da saúde apesar das enormes críticas ao seu desempenho – e estarão portanto aptos a impedir esforços para mudar o status quo em assuntos relacionados ao Shabat ou melhorar o status do judaísmo não-ortodoxo.

O QUE ACONTECE COM A COALIZÃO SE, COMO TEME NETANIAHU, A SUPREMA CORTE DE JUSTIÇA INTERVIR E O DESQUALIFICAR PARA FORMAR O NOVO GOVERNO POR TER SIDO INDICIADO?

A corte tem até aqui evitado julgar petições com esse efeito, alegando que a situação é teórica. A partir de segunda-feira à noite, a situação deixou de ser teórica. Se a corte desqualificar Netaniahu como primeiro-ministro, o acordo é claro e específico sobre o impacto disso no novo governo nos seus primeiros seis meses: haverá novas eleições.

O acordo não é definitivo sobre o que aconteceria no relativamente improvável evento da corte julgar o assunto após esse período. Ele certamente não especifica que novas eleições seriam realizadas nessas circunstâncias. Essa pode ser uma situação negligenciada pelos redatores do acordo ou deixada assim de propósito. Em qualquer caso é uma área cinzenta. O resumo é que esses acordos têm que ser construídos sobre alguma base de confiança.

GANTZ CONSEGUIU OBRIGAR NETANIAHU A ENTREGAR O PODER, COMO PROMETIDO, APÓS 18 MESES?

Não exatamente. Se Netaniahu quiser evitar a “rotação” – a passagem do poder para Gantz – ele pode tentar passar uma lei para dissolver a Knesset e realizar novas eleições. Se ele fizer isso, entretanto, o acordo essencialmente estipula que Gantz assumiria imediatamente o cargo de primeiro-ministro e o manteria nos três meses da campanha eleitoral e até a formação do novo governo – um total provável de cinco a seis meses.

Isso não parece muito dissuasivo para Netaniahu. Ele pode decidir, em qualquer momento que julgue que suas chances eleitorais são as mais brilhantes, que não vai passar o poder para Gantz. Haveria novas eleições. Ele teria que deixar de ser primeiro-ministro temporariamente, mas poderia presumivelmente apostar que voltaria ao poder em menos de seis meses. Se ele efetuar a rotação, em contraste, ele ficaria fora do poder por no mínimo 18 meses.

Gantz, em teoria, poderia ter forçado uma dissuasão mais radical. Mas, no final das contas, não existe nenhuma linguagem possível, em nenhum acordo político, que seja hermética. O resumo é que esses acordos têm que ser construídos sobre alguma base de confiança.

É PROVÁVEL QUE A SUPREMA CORTE INTERVENHA EM ALGUM DESSES PONTOS?

Ninguém sabe com certeza. Um monte de petições foram apresentadas à corte – sobre uma série de assuntos, incluindo se Netaniahu está apto a estabelecer um governo enquanto sob indiciamento e as necessárias emendas às quase constitucionais Leis Básicas de Israel para algumas cláusulas do acordo. A cláusula que essencialmente permite a Gantz ser primeiro-ministro de um governo de transição se Netaniahu tentar evitar a rotação ao forçar novas eleições, por exemplo, contradiz a lei atual, segundo a qual, o primeiro-ministro no dia em que a Knesset é dissolvida, permanece primeiro-ministro durante o período de eleições e até que seja formado o novo governo.

Naquilo que é considerado como o altamente delicado equilíbrio entre o judiciário e o executivo, muitos especialistas legais consideram que há aspectos no acordo que são inconstitucionais, mas não acham que os juízes intervirão obrigatoriamente; há precedente para a recusa da Suprema Corte em intervir quando peticionada sobre acordos políticos.

Medidas mais radicais que Gantz poderia ter tomado para forçar Netaniahu a cumprir a rotação, dizem alguns especialistas, poderiam obrigar os juízes a agir. Teoricamente, Gantz poderia ter tentado barrar Netaniahu de concorrer novamente se não cumprisse a rotação ao dissolver a Knesset e convocar eleições ou tentado prolongar o período antes dessas eleições, mas esses movimentos poderiam ser considerados pela Suprema Corte tão radicalmente inconstitucionais que necessitaria sua intervenção.

GANTZ APOIOU O PLANO DE PAZ DE TRUMP, MAS DIZ QUE ELE DEVERIA SER USADO COMO BASE PARA NEGOCIAÇÕES COM AS OUTRAS PARTES AFETADAS, COMO OS PALESTINOS E A JORDÂNIA. ELE GARANTIU PARA SI O PODER DE VETO SOBRE A META DECLARADA DE NETANIAHU DE ESTENDER UNILATERALMENTE A SOBERANIA ISRAELENSE, COM BASE NO PLANO, PARA TODOS OS ASSENTAMENTOS, O VALE DO JORDÃO E POTENCIALMENTE OUTRAS ÁREAS NA CISJORDÂNIA?

Aparentemente não. A partir de 1 de julho Netaniahu pode colocar em votação, no governo e/ou na Knesset, a extensão unilateral da soberania israelense na Cisjordânia. Não está definitivamente claro nas distintas cláusulas do acordo se Gantz e seus aliados estão livres para votar contra esse movimento, coerente com sua posição de que a anexação não deve ser unilateral, mas eles estão definitivamente impedidos de tentar bloquear ou adiar a votação sobre essa anexação e quase certamente não teriam número na Knesset para parar isso.

ESSA É A COALIZÃO QUE NETANIAHU GOSTARIA?

Netaniahu pode muito bem sentir que assinou um muito bom acordo. Ele conseguiu ficar no cargo – um lugar muito melhor do que a oposição, à partir do qual enfrentar as acusações criminais contra ele.

Haverá eleições se a Suprema Corte tentar desqualifica-lo, na qual ele poderá concorrer com uma plataforma que prometerá legislar para atender a vontade popular, anulando a corte.

O acordo lhe oferece caminhos potenciais para evitar a rotação daqui a 18 meses e as cláusulas do acordo sobre a rotação provavelmente não são de qualquer forma legalmente aplicáveis.

Ele pode promover a anexação.

Ele pode ter se livrado do partido Yamina liderado por Naftali Bennett, com quem ele tem uma relação famosamente desgastada, ou ele pode incluir o Yamina com termos desvantajosos e humilhantes.

Seu escolhido será o presidente da Knesset durante toda a duração da coalizão, em parte porque Gantz negligenciou a exigência do posto reverter para o Kachol Lavan quando e se ele assumir como primeiro-ministro.

A decisão de Gantz de juntar forças com ele provocou o colapso do Kachol Lavan como força potente que quase o sacou em três eleições.

O Likud estava, segundo relatos, tentado cortejar o Avodah de Amir Peretz e Itzik Shmuli para entrar na coalizão, sem Gantz, até domingo passado – oferecendo aos dois cinco ministérios e o eventual encanto de Peretz ser primeiro-ministro. Mas uma coalizão tão estreita, se Netaniahu realmente a estava buscando, seria altamente instável. A coalizão com Gantz também poderá colapsar, como Lapid previu na terça-feira que acontecerá em breve, mas Gantz não tem um lugar político óbvio para ir, se decidir romper a aliança e tem todo interesse em manter a parceria enquanto o cargo de primeiro-ministro estiver em teoria esperando por ele.

NETANIAHU REALMENTE ENTREGARÁ O PODER NO OUTONO DE 2021?

Uma pesquisa realizada na terça-feira à noite detectou que apenas 31% dos respondentes pensam que ele vai entregar.

“Nunca! Anote minhas palavras!”, insistiu o ex-primeiro-ministro e ex-ministro da defesa de Netaniahu, Ehud Barak, nessa mesma noite.

“Claro que sim”, contrapôs Aryeh Deri do Shas, minutos depois.

[ por David Horovitz, Editor-chefe do Times of Israel – publicado em 22|04|20 | Traduzido por José Zagury ]


PS: Mais uma pergunta difícil que o atual governo tem que explicar. Por que um apartamento em frente ao Metropolitan em New York, avaliado hoje em 16 milhões de dólares e que em teoria pertence ao Estado de Israel e é a residência do Embaixador de Israel na ONU, está em nome de um certo Benjamin Netaniahu?

https://www.facebook.com/jose.zagury/videos/10223150008278330/

 

 

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