Beinart Tocou no Nervo Exposto do Sionismo Liberal

A sinceridade total me obriga a declarar desde logo, e para ficar registrado, que eu tenho Peter Beinart em alta consideração. Prezo o seu intelecto e sua originalidade. Admiro sua coragem rebelde. Invejo sua sagacidade editorial e sua habilidade para escrever. Eu o conheço por mais de uma década e o considero um amigo pessoal.

E é por isso que minha reação instintiva à perturbadora dupla de artigos de Beinart, no Jewish Currents e no New York Times, nos quais ele advoga abandonar a aspiração sionista por um Israel judaico e democrático, foi, antes de mais nada, de tristeza e pesar. Beinart está pulando do barco, eu acho. Ele está velejando no pôr do sol num barco diferente e numa direção completamente oposta, dando adeus a seus leais e liberais fãs sionistas apoiadores da Solução de Dois Estados e abandonando-os à sua própria sorte.

Não fiquei surpreso com o giro de Beinart: quem quer que o tenha seguido nos últimos anos poderia ter previsto sua mudança. Eu reconheço que Beinart provavelmente vai influenciar alguns dos seus mais jovens e ardentes fãs a seguir o seu caminho. Eu rejeito a maioria das premissas e conclusões de Beinart, mas deploro a cruel cacofonia de críticas e difamação pessoal a que ele ficou sujeito nos últimos dias, após a publicação desses artigos.

Israelenses árabes e judeus protestam contra Anexação

Israelenses árabes e judeus protestam contra Anexação

Eu concordo com a substância da rejeição estupefata de Anshel Pfeffer à proposta de Beinart por um Único Estado democrático entre o Mediterrâneo e o Rio Jordão, como ingênua e utópica. Como outros escreveram, alguns com simpatia mas a maioria com desprezo, a visão de Beinart parece desligada da realidade atual do persistente conflito entre Israel e os palestinos: pode haver uma crescente e exasperada minoria palestina disposta a brincar com o conceito de um domínio democrático unificado, mas a maioria esmagadora dos israelenses, incluindo a cada vez menor minoria de esquerdistas, o vê como uma receita aterradora para a sua própria destruição.

Beinart cita e exagera a disposição inicial de alguns líderes sionistas para se contentar com um “Lar Judaico” em lugar de um Estado completo. Essas visões, entretanto, que foram às vezes o resultado de não acreditarem nas chances de conseguir uma independência judaica completa, foram amplamente rejeitadas pela maioria dos sionistas da Palestina e de qualquer forma foram consideradas irrelevantes por causa do Holocausto e pelo simples fato de que o Estado judaico foi obtido. Beinart quer desfazer a História e, ao fazer isso, reverter as supremas conquistas do sionismo.

Peter Beinart

Peter Beinart

Beinart cita a crescente aceitação em Israel da Lista Conjunta, predominantemente árabe e da crescente proeminência de seu líder Ayman Odeh. Extrapola que ambos poderiam servir como vanguarda para a sua sugerida “Democracia Israel-Palestina”. Ele falha em contar com o fato de que a recém-descoberta tolerância para com a Lista Conjunta na opinião pública israelense, deriva precisamente da percepção de que agora ela prioriza a situação dos árabes israelenses em vez de defender a luta dos palestinos como um todo.

Os palestinos, por sua vez, têm tradicionalmente maus olhos para os árabes que resistiram à Nakba e ficaram para trás para prosperar no Estado judeu. Será necessária uma completa – e atualmente inconcebível – mudança radical de atitudes para que aceitem a Lista Conjunta como líderes, pioneiros ou modelos.

É verdade que a recente agitação racial nos EUA e a crescente popularidade do movimento Black Lives Matter influenciaram não apenas Beinart e outros judeus liberais americanos, mas também alteraram sutilmente as visões israelenses de sua própria minoria israelo-palestina, que compreende cerca de 20% da população total. A narrativa israelo-palestina como um todo, entretanto, não é de uma maioria judaica supressiva que discrimina contra uma minoria árabe, mas sim de dois movimentos nacionais envolvidos numa amarga e incessante luta pelo mesmo pedaço de terra.

Poucos palestinos e menos ainda israelenses estão, de alguma maneira, próximos da mudança de paradigma necessária para abandonar um século de conflito implacável e adotar um conceito idílico de governo ou soberania compartilhada.

Concordo com Beinart que Israel tem muita se não a maior parte da responsabilidade pelo impasse atual, devido a seu desproporcional status e superioridade como força de Ocupação, permanente expansão de colônias e políticas rejeccionistas adotadas nos últimos anos por Benjamin Netaniahu. Mesmo considerando o fato de que o argumento de Beinart é direcionado principalmente para ouvidos judaicos, seu artigo deixa terrivelmente a desejar, por não apontar também a responsabilidade do lado palestino.

Os propagandistas israelenses podem exagerar a preferência histórica dos palestinos pela “luta armada”, sua recusa em reconhecer o direito de Israel a existir ou o fracasso em apoiar propostas diplomáticas razoáveis, mas todos tiveram um papel destacado em perpetuar a Ocupação e bloquear as vias abertas anteriormente para obter a paz.

Colocar o ônus exclusivamente em Israel distorce a História e a realidade do conflito.

Rejeitar o impulso principal das premissas e conclusões de Beinart, entretanto, não impede apreciar seu impecável senso de momento. Gostando dele ou detestando-o, a ruidosa rejeição e as às vezes zombeteiras condenações dos últimos artigos de Beinart, salientam sua elevada estatura entre os judeus americanos de tendência esquerdista e seu status de bode expiatório da maioria da comunidade pró-Israel. O grande alvoroço que irrompeu nos últimos dias prova que Beinart tocou num ponto nevrálgico do sionismo.

Se suas propostas são ou não utópicas, ingênuas, simplistas ou completamente desconectadas da realidade no terreno, como alegado, a dissertação de Beinart expõe a insuportável angústia atual do sionismo liberal nos EUA, bem como a dos israelenses de centro-esquerda. Suas fórmulas podem ser fantasiosas mas, mesmo assim, estão crescendo nos corações e mentes dos sionistas que concordam com a avaliação geral de Beinart sobre o impasse atual, mesmo que não admitam nem mesmo para si mesmos.

Passaram exatos dez anos desde que o artigo de Beinart, na seção de críticas de livros do New York Times, intitulado “O Fracasso do Establishment Judaico-Anericano” expôs o anteriormente oculto movimento de desilusão entre os jovens judeus americanos com a inabalável defesa das políticas da direita de Israel por sua liderança orgânica. Rejeitado similarmente na época pelos baluartes do sionismo e defensores do status quo, aquele artigo visionário de Beinart previu com precisão o descontentamento e a radicalização dos mais jovens e mais liberais judeus americanos, bem como a marginalização do establishment judaico como um todo.

A dissertação de Beinart de 8000 palavras em Yavne: uma causa judaica para a igualdade em Israel-Palestina, reempacotado provocativamente em versão mais curta no New York Times como “Não acredito mais em um Estado judaico”, está emitindo ondas de choque similares através da maioria liberal da comunidade judaico-americana. As reações predominantemente negativas e às vezes cáusticas a seus artigos refletem mais do que a simples rejeição racional às opiniões de Beinart.

Parafraseando a rainha mãe de Hamlet, Gertrude, “eles protestam demasiado”, expondo um profundo receio sionista de que a Solução de Estado Único, proposta por Beinart, esteja ganhando impulso entre os judeus americanos mais jovens e possa evoluir potencialmente para um grito de guerra mais amplo e um movimento muito mais influente.

Os artigos de Beinart enfureceram os sionistas moderados e apoiadores de Israel por colocar mais um prego no caixão aberto da Solução de Dois Estados. O ex-embaixador americano em Israel Dan Shapiro descreveu a proposta de Beinart como “a-histórica” e “um desastre em construção”. Yehuda Kurtzer estripou a confiança no precedente de Yavne, onde judeus embarcaram num caminho de orações e estudos após sua calamitosa derrota para os romanos, chamando-o de “conceito retórico” e “mau uso da memória”.

As reações à direita foram muito mais pessoais e cruéis, refletindo, antes de mais nada, o discurso azedo que substituiu o discurso respeitável como língua franca da direita. A raiva da direita foi direcionada menos contra a deserção de Beinart da Solução de Dois Estados, à qual a direita se opõe de qualquer forma, e mais contra o que foi retratado como seu abandono do campo sionista como um todo. Traidor, apoiador de terrorismo e, é claro, “judeu que se auto odeia” foram apenas alguns dos epítetos associados ao nome de Beinart.

Uma das primeiras e mais proeminentes contestações do plano de Beinart veio de Daniel Gordis, do Shalem College de Jerusalém, que por alguns anos foi o adversário favorito de Beinart em debates públicos e em um podcast conjunto. Gordis descreve os artigos de Beinart como “um impressionante apanhado de truques de prestidigitação e deturpações…que são um insulto à inteligência de seus leitores”, não menos.

Ao fazer sua alegação, entretanto, Gordis afirma que, ao contrário das asserções de Beinart, os israelenses não vivem com “medo de aniquilação” e, portanto, não projetam esses medos nos palestinos. Gordis atribui medo de aniquilação somente aos judeus americanos e afirma que “o milagre de Israel é que não mais nos preocupamos com aniquilação”. A apresentação de Beinart, alega Gordis, mostra “o quão pouco ele sabe sobre Israel”.

Eu invejo a paz de espírito de Gordis, mas não tenho ideia a qual Israel ele se refere. Não é nenhum com o qual eu esteja de forma alguma familiarizado. O “Medo de aniquilação” está enraizado no DNA pessoal das multidões de israelenses descendentes de sobreviventes do Holocausto, está entrincheirado na psiquê nacional do país e tem, teve e continuará a ter um papel particularmente crucial na formulação das atitudes e políticas dos israelenses.

Gordis rejeita a alegação de Beinart de que os israelenses projetam medo de aniquilação entre os palestinos e outros inimigos. A analogia, entretanto, tem sido propagada por primeiros-ministros israelenses desde Ben-Gurion, passando por Menachem Begin até Benjamin Netaniahu. Foi Netaniahu, afinal, que tentou minar a legitimidade palestina ao forjar o papel crucial desempenhado pelo líder palestino de meados do século XX, Haj Amin al-Husseini, no desenvolvimento da “solução final” de Adolf Hitler.

É esse medo de aniquilação primário e onipresente que cimenta os medos israelenses de destruição por seus inimigos – palestinos, iranianos ou outros. Por toda a história israelense – na Guerra dos Seis Dias, na guerra de 1973, nos ataques de mísseis na Guerra do Golfo e nas explosões suicidas na Segunda Intifada, por exemplo – o medo coletivo de aniquilação permeou as reações do público israelense. O medo de aniquilação desempenha e continuará a desempenhar um grande papel na formulação das políticas israelenses e na perpetuação da maioria de direita.

Ainda assim, a “deturpação” flagrante do próprio Gordis está na base do seu artigo inteiro, que apesar disso foi louvado como a resposta nocaute definitiva a Beinart.

Apesar da aspereza e do veneno pessoal direcionado a Beinart, entretanto, nenhum dos seus críticos deu uma resposta adequada para o principal motivo de sua mudança dramática: a diminuição, se não o desaparecimento, das perspectivas de Solução de Dois Estados e o avanço inexorável de Israel para uma decisão fatal entre um Estado tipo apartheid e uma entidade binacional não-judaica, que Beinart está promovendo.

Os detratores de Beinart na direita se baseiam na causa justa de Israel e no rejeccionismo palestino para racionalizar, não apenas os 53 anos de ocupação, mas também a perpetuação do status quo “até que os palestinos caiam na real”. Para Beinart e um crescente número de sionistas americanos liberais, o status quo há muito se tornou insustentável. Seus artigos afirmam que ele também não é mais aceitável.

Os críticos de Beinart também não admitem que a erosão no apoio a Israel em geral e à Solução de Dois Estados em particular foi precipitada pelas recentes promessas de Netaniahu de anexação, mesmo antes de suas palavras se transformarem em ação.

Netaniahu aparentemente abandonou o apoio israelense de longo tempo às negociações diretas e uma solução negociada, e descartou sua declarada oposição a atitudes unilaterais e a soluções impostas. Isso é visto como uma sabotagem deliberada do que sobrou da perspectiva de um final com Dois Estados.

Netaniahu insinuou que os palestinos dos territórios anexados não receberão cidadania israelense ou igualdade de direitos. Depois de anos em que Israel rejeita a acusação de apartheid, seu primeiro-ministro parece estar advogando abertamente a favor desse odioso regime baseado em raça, para o mundo todo ver. Netaniahu, de fato, tem feito muito mais do que Beinart poderia ter feito para sabotar a Solução de Dois estados e empurrar Israel em direção ao Estado Binacional que Beinart agora defende e minar o Israel liberal, democrático e sionista em que Beinart uma vez acreditou.

Nessas circunstâncias, está ficando cada vez mais difícil para os israelenses que buscam a paz, conciliar suas crenças com a realidade da Ocupação eterna. Eles estão cada vez mais cientes da possibilidade de que seu apoio à Solução de Dois Estados está servindo de cobertura e pretexto para a Ocupação eterna e evitar críticas e interferência do exterior. Diferentemente de Beinart, a esquerda, paralisada e abatida, falhou em apresentar uma estratégia de saída, plausível ou fantasiosa, do atual impasse.

Os artigos de Beinart podem não prover uma solução realista, mas podem muito bem instigar a renovação da conversação sobre como extrair Israel do atoleiro da Ocupação. Dada a crescente frustração com a realidade atual e a falta de esperança por mudança, os artigos de Beinart, por mais falhos que sejam, podem ser vistos em retrospecto como a gravação do escrito na parede sobre a triste forma das coisas que virão.

[ por Chemi Shalev | publicado no Haaretz em 12|07|20 | traduzido por José Manasseh Zagury]


Outros artigos (inglês)


Entrevista de Peter Beinart na APN – Americans for PEACE NOW |  10|07|2020

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