Vozes da Shoá

Horror e Resiliência

Neste dia dedicado à Memória do Holocausto, os Amigos Brasileiros do PAZ AGORA publicamos uma pequena série de poemas, originalmente escritos em ídish no decorrer da Shoá.

A compilação e tradução inéditas dos textos, assim como suas contextualizações, fazem parte de um trabalho pioneiro de Dina Lida Kinoshita, que se encontra em fase de revisão

Dina, nascida em 25/02/1947 num campo de refugiados nos arredores de Munich, tem um currículo acadêmico e político incomparável. É coordenadora dos Amigos Brasileiros do PAZ AGORA em São Paulo.

I – O INÍCIO DO FIM

Em 1938 o III Reich anexou a Áustria e a região dos Sudetos na Checoslováquia. A II Guerra irrompeu com a invasão da Polônia no dia 1 de setembro de 1939[1]. O país resistiu cerca de três semanas à blitzkrieg. Assim que se consolidou a ocupação, teve início o plano sinistro de perseguição e extermínio dos judeus.

A horrível situação dos cidadãos judeus da Alemanha foi apenas uma preparação dos planos macabros que seriam perpetrados contra todos os judeus da Europa após a ocupação nazista do Leste Europeu. A escalada do terror contra a população judaica tornava-se cada vez mais opressiva e no fim catastrófica na medida em que os judeus eram forçados a abandonar suas cidades e vilarejos. A canção a seguir, de Gebirtig, retrata esse episódio, sem perder a esperança por dias melhores, uma constante, talvez, do judeu errante.

MULTIDÕES DE ENXOTADOS SE ARRASTAM

Multidões de enxotados, se arrastam

Por caminhos arenosos e ensanguentados.

O terror nos olhos paralisados.

As crianças às mães aconchegadas,

As mães de acalentar os pequenos, exaustas

Os pais amargurados pelos sofrimentos

Curvados pela aflição.

Nuvens de fumaça num céu azul,

Consomem nossas cidades

Que se despedem das multidões ao longe.

E alguém entre a multidão,

Um homem grisalho e idoso, um ancião,

Consola as multidões dos enxotados

E ainda tem esperança de tempos melhores

OS GUETOS

Impossibilitados de agir, eram confinados nos guetos onde as condições eram duras, imundas e insustentáveis. Esta escalada das ações culminou na última manifestação de desumanização: a “Solução Final” nazista para os judeus da Europa.

A estratégia nazista era mais ou menos a mesma em vilarejos, cidades e capitais da Europa. Há uma vasta bibliografia sobre estes fatos: Yizkor Books, trabalhos de historiadores tais como  Emanuel Ringelblum, Ber Mark e Samuel Sadow. Este resumo segue um Yizkor Book a respeito de Grodno, Lida, Olkieniki e Vishay [SPECTOR, S. and FREUNDLICH, B., 1996].

O avanço alemão foi espetacular. À medida que o exército avançava, era acompanhado por pesados bombardeios aéreos. A máquina de guerra alemã aterrorizava as populações civis, particularmente os judeus, à medida que os vilarejos, cidades e capitais iam se rendendo.

Muitos fugiam a pé, de bicicleta ou em vagões sem destino. Poucos conseguiam chegar a algum lugar seguro e alemães forçavam-nos a retornar para o lugar de origem. Muitos foram feridos ou mortos pelas bombas lançadas enquanto tentavam fugir ou voltar para as suas casas.  Um mês após o início da guerra os nazistas estabeleceram a máquina administrativa alemã e o aparato de segurança com a Gestapo e a Polícia Criminal. Ao mesmo tempo os alemães ordenaram a criação do Judenrat (Conselho Judaico), um ente representativo dos judeus que responderia à liderança nazista alemã nos territórios ocupados.

Desde os primeiros dias da ocupação alemã, os judeus foram, imediatamente, postos fora da lei. As crianças judias desapareceram da rua sem deixar traços; os adultos e crianças hospitalizados, os idosos das casas de repouso e os membros da “inteligentsia” tiveram o mesmo destino. Todos foram executados.

O poeta e músico Josef Papiernikow escreveu um poema sobre as crianças judias que não brincam mais sob os verdes arbustos da Polônia, onde não se ouve mais suas vozinhas em iídiche. Sumiram tanto no tempo da relva verdejante como na época da neve. Não havia mais rusgas nem peraltices para mostrar vantagem e coragem. Com a terra devastada, com ruas e casas judaicas destruídas, os arbustos poloneses estão enlutados. O poeta indaga num trecho do poema:

SOB OS VERDES ARBUSTOS DA POLÔNIA

…Onde se entocaram as criancinhas como ratinhos?

Em seguida descreve a situação:

Crianças judias com olhos arregalados,

Tão negras quanto a escuridão,

Espiam apavoradas o ocorrido

Sob a desgraça marron[2] que os atingira…

Na ausência da lei, a vida dos judeus foi regida por decretos e editais publicados, às vezes post facto. Poucos dias após a entrada dos alemães numa cidade, todos os judeus eram obrigados a se registrar e a palavra “Jude” era estampada na sua carteira de identidade. Em seguida, toda uma série de restrições e proibições era reforçada. Era proibido aos judeus caminhar pelas calçadas; eles eram forçados a caminhar no meio das ruas em fila única. Também não lhes permitiam o uso do transporte público, a entrada em áreas de lazer ou de práticas esportivas, teatros, museus e bibliotecas. As crianças não podiam frequentar a escola. Os homens judeus eram obrigados a tirar seus chapéus ao cruzarem com alemães[3]. Foi banido qualquer contato entre judeus e não judeus. Os judeus foram obrigados a se identificar através da “estrela de Davi” amarela pregada em suas vestimentas.

O degrau seguinte da escalada é constituído pelo confisco, “contribuições” e desapropriações. Os oficiais e soldados alemães visitavam lares judaicos e confiscavam tudo que lhes aprouvesse antes dos judeus serem confinados nos guetos. Os oficiais, soldados e autoridades, também, cometiam extorsões pecuniárias e de valores. Para assegurar a continuidade econômica nas cidades ocupadas pelos alemães, as autoridades administrativas municipais substituíram os judeus por “arianos” nos estabelecimentos comerciais.

Dois ou três meses depois, os judeus foram forçados a abandonar suas casas e se deslocar para os guetos, densamente povoados, prensados e cerrados por cercas eletrificadas ou muros. Simultaneamente foi proibido aos judeus possuir quaisquer bens e todas as propriedades judaicas foram transferidas para o Reich.

O mesmo Gebirtig escreve um poema musicado no pós guerra:

EU TIVE UM LAR

Eu tive  um lar – um espaço modesto e aconchegante,

Alguns utensílios, como entre pobres.

Como raízes fincadas de uma árvore,

Eu me fixava ao meu quinhão de pobreza.

Com ódio e morte eles chegaram,

Meu pobre lar que possuo aqui,

Que com grande esforço em longos anos construí,

Eles num único dia devastaram.

Eu tive um lar, um quarto e uma cozinha,

E assim quieto por muito tempo vivi,

Tive, ao meu redor, muitos bons amigos, companheiros,

Um quarto repleto de poemas e cancioneiros.

Eles chegaram como uma pestilência,

Me enxotaram da cidade com a esposa e meu filhinho,

Ficamos sem um lar como um pássaro sem ninho,

Sem saber por que, por qual pecado, qual ofensa.

Eu tive um lar, mas agora não mais, lamento.

Meu infortúnio para eles é divertimento–

Eu busco agora um novo lar, mas é difícil. Oh! Muito difícil

E não sei para onde ir, nem por quanto tempo durará o meu suplício.

II – O FIM

Rikle Glezer era uma adolescente naqueles dias trágicos. Ela manteve durante o período da guerra um caderno de poemas. Ela escapou de um trem de deportação e juntou-se a um destacamento de partisans como o membro mais jovem do grupo. Num dia ensolarado de verão, a 6 de setembro de 1941, os judeus de Vilna foram forçados a abandonar repentinamente suas casas em toda a cidade e foram confinados em dois guetos minúsculos no velho distrito judaico. Muitos foram levados diretamente a Ponar e assassinados. Face ao fato inacreditável do assassinato em massa promovido pelos alemães, ela apresenta nesta canção este desastre em sua verdadeira dimensão. É uma narrativa premonitória da Solução Final.

EM UM DIA ENSOLARADO DE VERÃO

Em um dia ensolarado,

Como sempre, ensolarado e belo,

E a natureza estava então

Tão repleta de encantos.

Os pássaros estavam cantando,

Pulando alegremente ao redor,

Nós fomos enfileirados dentro do gueto

Oh! Imaginem o que aconteceu conosco,

Nós entendemos que tudo estava perdido,

De nada adiantaram nossas súplicas

Por salvação.

Fomos arrancados de nossos lares.

Foi um dia longo. Estava difícil caminhar,

Parecia-me que uma pedra

Ao mirar-nos, romperia em lágrimas.

Velhos e crianças caminhavam

Como gado para o abatedouro.

Sangue humano jorrava pelas ruas.

Agora estamos todos despidos.

Torturados, enganados pela vida.

Um não tem pai, outro não tem mãe,

Raros são aqueles que têm apenas um deles.

O inimigo atingiu o seu grande objetivo.

Nós éramos muitos,

De modo que o chefe ordenou

Que os judeus dos arredores

Fossem arrebanhados

E assassinados em Ponar.

As casas ficaram vazias,

Mas as valas, então ficaram cheias,

O inimigo alcançou seu grande objetivo.

Em Ponar vemos agora pelos caminhos

Objetos, chapéus encharcados pela chuva.

São objetos daqueles que pereceram

Morte Sacrifical,

De almas sagradas.

A terra cobriu-os para sempre.

E agora, o tempo está ensolarado e lindo,

Outra vez

Tudo ao redor tem um olor esplêndido

E nós somos torturados

E todos sofrem com a palavra

Apartados do mundo

Ocultos pelos altos muros,

Apenas um raio de esperança se agita.

III – Resiliência

A Professora Mira” é um dos mais belos poemas do período. Neste poema, o grande poeta Avrom Sutskever, condensou a história trágica de um mundo judaico destruído. Além disso, é um hino de esperança e coragem em que a professora fala de Lekert (herói da classe operária judaica da Lituânia), de sua grande ousadia, incutindo-a em ambos, a si e aos alunos. Mira tenta manter a identidade cultural deles através do uso de referências a autores clássicos da literatura judaica tais como Scholem Aleichem e Itzchok Lejb Peretz.

A PROFESSORA MIRA

Com remendos amarelos cobrindo nossos ossos,

Passamos por todas nossas velhas ruas, somos forçados a ir para o gueto.

Cada casa diz adeus a suas filhas, a seus filhos,

E petrificados cumprimos cada ordem dada.

Os filactérios coroam a cabeça de cada avô;

Um bezerro e uma cabra se emparelham na frente;

Um arrasta sua amada, semimorta,

Outro – um feixe de lenha numa carroça.

E bem no meio deles, Mira a professora –

Uma criança num dos braços, como uma cítara dourada,

E segura pela mão outra criança esperta;

E os alunos, um batalhão deles, sempre a acompanham.

O portão do velho bairro judeu, sua madeira

Tão cálida como um cadáver que parece apenas adormecido;

E como se uma comporta se abrisse velozmente –

Foram tragados pelo abismo.

Foram trancados sem luz, sem pão, no meio do entulho;

Um lápis era a luz deles e um livro o pão.

Ela encontrou um apartamento em ruína para eles;

Com dobrada devoção a Mira

Eles prosseguiram no seu trabalho.

As crianças se iluminavam e riam quando ela lhes lia

Um conto de Scholem Aleichem; ela penteava

Com ternura seus cabelos, enfeitava-os com fitas azuis,

E contava-os; eram ao todo cento e trinta e três.

A Professora Mira acordava ao amanhecer: quando levantava,

Esperava pelas crianças, razão de sua vida.

Elas chegavam e ela as contava. Oh, melhor não contar!

Durante a noite, o número foi cortado pela espada…

Mordendo seus lábios com coragem renovada, ela fala

Da audácia de Lekert para encorajá-los,

– O Professor está chegando: “nossa canção deve ser cantada

Tão alto que possa ser ouvida além dos portões”.

Ela já ressoa: “A primavera não tarda…” mas eles destruíram

Nossas bases com paus e baionetas.

Eles arrancavam (gente) pelos cabelos de porões e tocas.

Mas “Logo chegará a primavera”… soava mais alto.

Agora restam sessenta sem irmãs, sem mães…

A Professora Mira é tudo ao mesmo tempo.

Em breve haverá um dia festivo, assim queridos,

Deve-se preparar rapidamente uma apresentação artística!

No dia festivo são apenas quarenta… apenas alguns

Vestem camisas brancas com luminosas faces.

O palco está fresco, ensolarado, num jardim,

É possível banhar-se no riacho.

Quando as crianças estavam lendo “As Três Prendas” de Peretz

A estrutura foi destruída pelo inimigo.

Eles caçaram! E pela manhã restaram

De cento e trinta, apenas Mira e sete.


[1]De acordo com o Pacto Molotov-Ribbentrop, a Polônia foi dividida poucos dias antes do início da II Guerra. Como consequência os países bálticos, a Bielorrússia Ocidental e a Ucrânia Ocidental, conquistados pela Polônia na Guerra Russo-Polonesa de 1918-1921, foram anexados à União Soviética. Os judeus desses territórios só começaram a sofrer as perseguições nazistas após a invasão nazista da URSS em 22 de junho de 1941. A situação na URSS não era um mar de rosas sob o regime stalinista, mas naquele momento não havia uma perseguição específica contra os judeus. A URSS repatriou após a Guerra uns 300 mil judeus poloneses. Por outra parte, Hungria e Romênia eram governados por aliados do III Reich, que inclusive enviaram tropas para lutar junto ao Exército alemão em Stalingrado.

Porém, os cidadãos judeus desses dois países, apesar de humilhados e maltratados, não foram entregues a Hitler. Em 1944 os dirigentes desses países, Horty e Antonescu, foram derrubados. Hitler ocupou a Hungria. Em poucos meses, os 500 mil judeus húngaros foram deportados para Auschwitz, onde a grande maioria foi exterminada e a Hungria se tornou “Juden rein”.

Na Romênia não lograram realizar o mesmo porque o Rei Miguel deu um golpe para derrubar Antonescu e se aliou ao Exército Soviético. Na Itália ocorreu algo semelhante à Hungria após o assassinato de Benito Mussolini. Os judeus búlgaros sofreram muito, mas o governo búlgaro não permitiu que fossem deportados.

[2]O uniforme do exército alemão era marrom.

[3]Um dos preceitos dos judeus religiosos é manter a cabeça sempre coberta.



[ Tradução e contextualização dos poemas por Dina Lida Kinoshita para os Amigos Brasileiros do PAZ AGORA | www.pazagora.org ]

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