Putin, Bolsonaro e certa esquerda


A justificativa russa para invadir a Ucrânia lembra uma ideologia que levou à Segunda Guerra Mundial; em nome do passado e de uma cultura única comum, nega o direito à existência de um país soberano, cujo povo hoje luta pela sobrevivência.

[ por Bernardo Sorj | Publicado n’O Globo | 05|03|2022 | editado pelo PAZ AGORA|BR ]

Variedade de análises e de posturas perante os acontecimentos recentes no Leste Europeu é parte necessária da vida democrática. O que é de se esperar é que elas sejam bem fundamentadas e consequentes com os valores que defendem.

Diversos artigos de jornais e de blogs de autores de esquerda explicam a invasão da Ucrânia como produto das exigências de segurança russa e da política imperialista americana.

Se o que está acontecendo no mundo contemporâneo for criticado em nome do pacifismo. ou porque todos os implicados possuem interesses mesquinhos, que “tudo é uma grande sujeira”, como aparece em certa sensibilidade do senso comum, estaríamos perante um argumento sólido e moralmente aceitável.

Acontece que não é esta a postura de certos analistas “engajados”. Para eles, trata-se de atacar os Estados Unidos, responsável por manter uma ordem mundial imperial.

Certamente, a política externa americana está crivada de episódios inaceitáveis, que devem ser criticados. Igualmente pode-se argumentar que a expansão da Otan para a Europa do Leste não foi adequada, que poderia ter-se procurado caminhos alternativos de aproximação com a Rússia.

Mas o núcleo duro está em outro lugar. Os Estados Unidos, apesar das várias brutalidades cometidas, protegem a ordem mundial do capitalismo democrático. Frente a eles, apresentam-se dois discursos alternativos para o sistema internacional, o de uma potência em ascensão, a China, e o de outra potência militar, mas sem contraparte econômica, a Rússia, que propõe uma ideologia autoritária de direita reacionária, que se apresenta como último baluarte dos “valores cristãos” frente ao materialismo do Ocidente.

O governo russo legalizou que as mulheres possam ser maltratadas pelos maridos, persegue os homossexuais, assassina seus oponentes, fecha as organizações da sociedade civil e aprisiona os manifestantes que criticam o governo.

Seria só um problema interno, se o governo russo não apoiasse os partidos de extrema direita da Europa, não interferisse nas eleições de outros países e não sustentasse as mais variadas ditaduras, inclusive as latino-americanas: Venezuela, Cuba e Nicarágua. Sua justificativa da invasão à Ucrânia lembra uma ideologia que levou à Segunda Guerra Mundial: em nome do passado e de uma cultura única comum, nega o direito à existência de um país soberano, cujo povo hoje luta pela sobrevivência.

A questão de fundo que deve ser colocada para estes analistas “anti-imperialistas” é: em que mundo eles desejam viver. No mesmo mundo de Bolsonaro e de Trump (outro admirador de Putin), a da extrema direita global, ou no mundo capitalista democrático.

Porque esta é a realidade da geopolítica global. Se disserem que são contra o mundo existente, tudo bem, se dissociem dele, e produzam teorias de um mundo alternativo. Mas se forem fazer escolhas, que explicitem de que lado estão se posicionando.

Bernardo Sorj é sociólogo

[ por Bernardo Sorj | Publicado n’O Globo | 05|03|2022 | editado pelo PAZ AGORA|BR ]

Comentários estão fechados.