O Retorno da Grande Mentira 


A “Esquerda” Antissionista bebe na fonte do Nazismo

Após a Segunda Guerra Mundial, o bloco soviético passou a propagar a mentira de um complô internacional sionista para submeter povos árabes. 

Interpretações distorcidas e difamatórias do conceito de sionismo vem sendo difundidas desde então por setores políticos – com clara ou disfarçada conotação antissemita. 

O sionismo, como manifestação do direito de emancipação nacional do povo judeu é tão legítimo como o de quaisquer povos, como inclusive o que legitima a construção de um Estado Palestino



[ por Daniel Golovaty Cursino, historiador formado pela USP e psicanalista.
Membro do coletivo Golem e dos Amigos Brasileiros do PAZ AGORA |
versão atualizada do artigo publicado na versão digital da Folha de São Paulo em 08/04/2024 ]

“A Grande Mentira” é o nome pelo qual ficou conhecida a alegação nazista de que a Alemanha não perdera a Primeira Guerra Mundial no front de batalha, pois, segundo os nazis, a derrota se deveria a uma “apunhalada pelas costas” desferida ao país pelos judeus alemães. Entretanto, esta acusação era apenas a ponta aparente de algo muito maior, a saber, a imputação ao povo judeu de um conjunto de características deletérias que o singularizariam não “apenas” como traidor da Alemanha, mas como a verdadeira raiz do Mal no mundo. Portanto, para que o “problema judaico” fosse resolvido, seria necessária a completa aniquilação deste povo.

Na realidade, a Grande Mentira não era uma mentira, afinal, os nazistas fizeram exatamente tudo aquilo de que acusavam os judeus. Eles falavam a verdade, mas a verdade sobre eles mesmos (mecanismo projetivo). Suas principais fontes eram a falsificação apócrifa conhecida como “Os Protocolos dos Sábios de Sião” e o panfleto do notório antissemita Henry Ford, denominado “O Judeu Internacional”. Os Protocolos estabeleciam os clichês fundamentais do antissemitismo radical moderno, enquanto o panfleto de Ford introduzia o conceito de “judeu-bolchevismo”, incluindo, com isso, a União Soviética e os comunistas no malévolo plano da “dominação mundial judaica”, a qual passaria então a se sustentar em dois pilares principais: as democracias liberais e o marxismo, ambos controlados pelo “dinheiro sujo” daquilo que os nazistas chamavam de “judaísmo internacional”.

Poucos sabem, mas, alguns anos após a derrota da Alemanha nazista, a Grande Mentira seria reeditada pelo chamado bloco soviético, já no período da Guerra Fria. Isto começou a tomar uma forma mais definida no último período de Stalin, quando o déspota soviético acusou a existência de um “complô das batas brancas”, composto por médicos (quase todos judeus) que, a mando do “sionismo internacional”, pretenderiam assassinar os principais dirigentes da União Soviética (Poliakov, 1969; Tabarovsky, 2019).

Mas este crescente de antissemitismo, infelizmente, não se encerraria com a morte de Stalin. Durante toda a Guerra Fria, a máquina de propaganda soviética espalhou pelo mundo inteiro – através de seus países aliados e dos Partidos Comunistas – a Grande Mentira, alterada para se adaptar ao modo como a esquerda totalitária funciona. Enquanto a extrema-direita busca eliminar o conceito de universal da condição humana (para ela não haveria Humanidade, apenas diferentes raças em luta), a esquerda totalitária age de forma diferente. Em vez de eliminar o conceito de universal, ela o falseia, como se evidencia, precisamente, em seu antissemitismo.

Assim, como a esquerda não pode ser abertamente racista, não podem, igualmente, existir antissemitas em suas fileiras – apenas “antissionistas”, de modo que todos os clichês do antissemitismo clássico teriam que ser deslocados para o significante “sionismo”, procedimento espúrio que culminaria na construção de um verdadeiro decalque pela esquerda da demonologia antissemita nazi, a saber: a demonologia antissionista.

Destarte, para tal demonologia, o sionismo deixava de ser entendido como o movimento de libertação nacional do povo judeu – um povo singularmente disperso e milenarmente perseguido – por autodeterminação e segurança em sua pátria histórica, passando então a ser visto como o produto de um complô do imperialismo ocidental para submeter os povos árabes e islâmicos. Isto fez com que, no lugar de críticas legítimas, tanto ao movimento nacional judaico quanto ao Estado de Israel – os quais, assim como todos os movimentos nacionais e todos os Estados, estão suscetíveis a cometer crimes, bem como a demandar reformas e correções – o antissionismo passasse a se caracterizar, essencialmente, pela exigência da destruição de Israel, em nome da fraudulenta restauração de uma imaginária “Palestina histórica”, “do Rio ao Mar”.

Mas como é possível à esquerda antissemita atacar os judeus sem que isto seja visto como antissemitismo? O primeiro passo fundamental consiste na deturpação da palavra “sionismo”, a qual passa, então, a adquirir um sentido completamente diferente e até oposto ao seu real sentido histórico. Para tanto, a esquerda antissionista faz com que esta palavra mude de categoria, deixando de significar o movimento nacional do povo judeu, o qual produziu uma nova configuração histórica deste povo, como língua (hebraico), cultura (literatura, arte, cinema, música, escolas, universidades, etc.), costumes populares, memória, história e identidade, transformando-a em outra coisa.

O sionismo é um movimento cuja esfera política sempre abarcou diversas correntes ideológicas, que vão da extrema-direita à extrema-esquerda e que possuem um único ponto em comum, a saber: o direito de autodeterminação judaica em parte do território chamado Terra de Israel/Palestina.

Com este procedimento falseador dos antissionistas, portanto, o movimento nacional judaico passa a ser entendido, em seu todo, como uma mera ideologia.

Uma vez perpetrada esta primeira violência, o segundo passo fundamental do antissionismo consiste, como dito acima, em deslocar para “o sionismo” todos os clichês antissemitas que historicamente constituíram a Grande Mentira nazi. Quais são eles?

1) Superpoder e dominação mundial, através do controle da economia e dos meios de comunicação, bem como da ligação de todos “os sionistas” em um grande complô internacional (“lobby sionista” ou “sionismo internacional”);

  2) Indiferenciação – elemento fundamental da desumanização – uma vez que, no discurso antissionista, todos “os sionistas” são essencialmente iguais, sendo suas diferenças superficiais e, sobretudo, enganosas;

3) Perfídia, já que “os sionistas” seriam ladinos e desonestos, verdadeiros “pais da mentira” (demônios) e falsos cidadãos, desleais aos países em que vivem. Ubíquos, estariam sempre atuando e tramando na sombra;

 4) Desnaturação, visto que o sionismo não passaria do resultado de uma conspiração imperialista para projetar poder e dinheiro ocidentais no Oriente Médio e, assim, garantir a ordem do Capital nesta região;

  5) Perversidade extrema, já que “os sionistas” seriam entes malignos, agentes, por excelência, da destruição. Matariam por sadismo e roubariam os órgãos dos palestinos. Neste ponto, observamos um fenômeno incrível, que é a ressurgência e ampla divulgação, em meios de esquerda, do simbolismo dos judeus deicidas, a raiz histórica da acusação de perversidade extrema e de monstruosidade feita ao povo judeu.

Durante toda a história da Cristandade, os judeus foram massacrados e literalmente demonizados, mas continuaram a ser considerados o povo que dera ao mundo o Salvador. Apenas no século XIX, com o desenvolvimento do moderno antissemitismo racial na Alemanha, é que Jesus passou a ser considerado “ariano”, signo de um aprofundamento no processo de violência simbólica que culminaria no Holocausto. Agora, estamos vendo circular nos meios desta esquerda antissionista todo um discurso com uma iconografia em torno do “Jesus Palestino”, o qual mobiliza contra Israel e “o sionismo” o imaginário da maldade deicida dos judeus, cujo paroxismo é a acusação de que Israel e “o sionismo” teriam por objetivo precípuo assassinar de forma intencional e planejada as crianças palestinas – acusação que marca, historicamente, o retorno do “libelo de sangue”, agora também no interior da esquerda.

Até aqui, temos todos os pontos do antissemitismo nazi deslocados para o antissionismo, bastando substituir “sionismo” por “judaísmo” e “sionista” por “judeu”. Mas os burocratas soviéticos precisaram inovar, visto que, como dito acima, a ideologia totalitária de esquerda não funciona – não pode funcionar – exatamente como a de direita. Daí a importância capital, para o antissemitismo de esquerda, em fazer distinção entre os judeus, separando-os em “sionistas” (maus) e “antissionistas” (bons).  Tais “bons judeus” foram, no passado, muitas vezes usados como interrogadores e chefetes (kapos) em processos-fake,promovidos pelos regimes da Cortina de Ferro para perseguir e assassinar comunistas judeus. Assim, a figura do “bom judeu antissionista” constitui o álibi necessário e até imprescindível para que os antissionistas possam negar – às vezes, até para eles mesmos – com alguma verossimilhança, o caráter antissemita de sua ideologia.

Portanto, era preciso que o antissemitismo de esquerda (antissionismo) adicionasse à Grande Mentira nazi mais dois pontos:

6) O sionismo seria essencialmente colonialista e racista. Como já podemos observar, ao contrário de outros tipos de racismo, o antissemitismo não projeta os judeus apenas como inferiores, mas também como “superiores”, de modo que se torna possível ao antissemita se autocompreender como alguém que luta contra o sistema, uma espécie de freedom fighter, combatendo a suposta dominação opressiva do “judaísmo internacional”.

Assim, enquanto os nazistas queriam exterminar os judeus em nome da Natureza, os antissionistas querem aniquilar Israel e os “judeus-sionistas” do mundo inteiro em nome da Humanidade; enquanto o antissemitismo nazista se apoia numa ideia mitificada de Natureza, o antissemitismo de esquerda deriva de uma corrupção da ideia de Humanidade como valor. Daí o paradoxo de um racismo que pode se apresentar como universalista e antirracista;

  7) A ideia de que o sionismo seria essencialmente “racista” e “colonialista” é levada ao extremo quando se chega a equipará-lo ao nazismo e Israel à Alemanha do Terceiro Reich. Essa acusação não é nova e não precisou esperar pela atual guerra em Gaza. Na verdade, essa equivalência infame existe há quase tanto tempo quanto o próprio Estado de Israel e é conhecida na literatura sobre antissemitismo do pós-Guerra como “inversão do Holocausto” (Tabarovky, 2024).

Em breve, poucos judeus que não possuam o carimbo de “bons judeus antissionistas” serão agredidos como judeus que são. A tendência parece ser a de que, a exemplo da lojista judia agredida no interior da Bahia, os judeus passem a ser agredidos apenas como “sionistas”. Para aqueles judeus que ainda não estão habituados com isto, esta acusação pode produzir algum espanto. A pessoa pensa: “eu não vivo em Israel. Não participo de nenhum movimento político. Sim, eu acredito que Israel é um Estado legítimo. Mas desde quando isto é um crime?”

Essa perplexidade só desaparece quando o judeu (ou judia) em questão percebe que não há nenhuma correspondência ou traduzibilidade entre sua própria compreensão do sionismo e a calúnia de “sionista” da qual está sendo vítima. Além disso, substituir “judeu” por “sionista” oferece duas vantagens importantes para os antissemitas: permite que eles legitimem seu discurso publicamente como não sendo racista e, ao mesmo tempo, contornem a lei penal brasileira.

O conflito israelense-palestino, com esta terrível guerra em Gaza, iniciada pelo massacre de 7 de Outubro perpetrado pelo Hamas, encontra-se em seu momento mais agudo desde a guerra de 1948. Isto cria um ambiente propício para que tanto antissemitas quanto islamofóbicos saiam do armário e potencializem seus discursos de ódio na esfera pública, com o agravante de que a dinâmica das redes sociais os favorece. Seguindo autores como Robert Kurz e Moishe Postone (Golovaty, 2016; Postone, 2012; Kurz, 2003) tenho argumentado que o conflito entre israelenses e palestinos se trata de um conflito inflado, pois condensa em si as duas principais narrativas mistificadoras e regressivas sobre a crise mundial: a da guerra de civilizações da direita e extrema-direita (tanto ocidentais quanto islâmicas) e a da “guerra antiimperialista” da esquerda campista ou, mesmo, da dita esquerda “decolonial”, ambas tratadas pelo Hamas e o Hezbollah como seus “amigos da esquerda global”. 

Este caráter de conflito inflado e parcialmente vicário é o que explica o grande número de racistas parasitando ambas as causas (há também muitas calúnias sendo divulgadas contra os palestinos), as quais, definidas adequadamente, são totalmente justas. Pois, a reivindicação por autodeterminação que fundamenta historicamente o movimento sionista é a mesma que torna a ocupação e colonização israelense de territórios palestinos, mais que uma abominação, um crime contra a Humanidade. Inversamente, a causa palestina tem sua legitimidade abalada quando acolhe em seu interior o antissemitismo e seu discurso criminoso da destruição de Israel. Os extremismos de ambos os lados se retroalimentam da promoção ativa desta confusão. (guerra, da raiz indo-europeia wers – confusão).

Portanto, para alcançar uma paz justa entre israelenses e palestinos, é crucial reconhecer as dificuldades únicas deste conflito, que o tornam diferente de qualquer outro conflito nacional. A necessária restauração do campo político nos obriga a um compromisso anterior com a recuperação das palavras, em sua capacidade de indexar e significar realidades determinadas. Somente assim elas poderão deixar de funcionar como veneno para se tornarem as sementes de um autêntico endereçamento ao outro, em sua realidade concreta de dor, mas também de aposta no valor da vida e de esperança de paz e reconciliação.

Referências

“A Esquerda Democrática e o Conflito Israelense-Palestino”, (Revista Fevereiro, número 9, https://www.revistafevereiro.com/pag.php?r=09&t=15”, 2016) Daniel Golovaty.

O Médio Oriente e a Síndrome do Antissemitismo”, In: “Guerra de Ordenamento Mundial http://www.obeco-online.org/rkurz256.htm ” (2003), Robert Kurz.

“Do Antissionismo ao Antissemitismo” (Perspectiva, 1969), de Leon Poliakov.

“Sionismo, Antissemitismo e Esquerda” (Revista Sinal de Menos, 2012), https://www.marxists.org/portugues/postone/2011/09/40.pdf, Moishe Postone.

“Soviet Anti-Zionism and Contemporary Left Antisemitism”, (https://fathomjournal.org/newsletter/fathom-highlight-izabella-tabarovsky-on-soviet-anti-zionism-and-contemporary-left-antisemitism/, 2019”, de Izabella Tabarovsky.

Entrevista concedida em 21/01/2024 https://www.youtube.com/watch?v=7v9tNic96-U por Izabella Tabarovsky.

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