Antissemitismo, Crise e Consciência

[ por DANIEL GOLOVATY, Historiador e psicanalista – membro dos Amigos Brasileiros do PAZ AGORA, e LUNA PEREL HARARI , advogada, mestre em direito criminal – membro do GOLEMColetivo Judaico de Combate ao Antissemitismo | Publicação 12/05/2025 em www.pazagora.org ]


Enquanto celebrávamos o início de Pessach [a Páscoa Judaica] na noite de 12 de abril — comemorando a libertação do povo judeu da escravidão no Egito e o início da travessia para a Terra de Israel —, fomos surpreendidos com a publicação, pela Folha de São Paulo, através do podcast do seu caderno Ilustríssima[i], de uma entrevista com a professora Arlene Clemesha.

Muito embora o objeto da entrevista fosse o lançamento da segunda edição do seu livro Marxismo e Judaísmo, obra que trata da relação da “questão judaica” com o marxismo no contexto do império czarista e da Revolução Russa, a professora afirmou que “o judaísmo” (assim, em abstrato) hoje estaria sofrendo de uma “crise de consciência”, em razão dos crimes de guerra perpetrados pelo governo israelense em Gaza. Além disso, Clemesha estabeleceu uma associação leviana — para dizer o mínimo — do crescimento do antissemitismo contemporâneo com tais eventos.

Antes de adentrar na bifurcação discursiva que produz sérios problemas e induz o público a erro, importa contextualizar a fala de Clemesha com sua trajetória político-intelectual.

É impossível dissociar as falas sobre antissemitismo da professora de suas recorrentes visitas ao Irã, muitas das quais a convite de instituições ligadas ao regime teocrático islâmico, de onde (em 2006) voltou tentando justificar a infame conferência organizada pela República Islâmica sobre o Holocausto, denominada “Revisão do Holocausto, Uma Visão Global”, alegando não se tratar de evidente convescote de negadores do Holocausto, mas apenas de uma iniciativa do governo iraniano para “debater o assunto”. E, além disso, pasmem, defendendo o próprio presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad (ele mesmo um negacionista contumaz) quanto ao seu intento declarado e reiterado de “varrer Israel do mapa”. Segundo a professora, o déspota de Teerã, com tais palavras terríveis, não se referia a Israel (país e povo), mas apenas ao “regime sionista”. [ii]

Da mesma forma, importa esclarecer ao leitor que, durante a Segunda Intifada palestina (2000-2006), quando o Hamas massacrava civis israelenses em ônibus, bares e festas de casamento e bar mitzvah em Israel (1.100 mortos, entre os quais mais de 400 crianças), a professora clamava pela “defesa incondicional da resistência palestina”.

De fato, seu apoio “incondicional” ao grupo terrorista Hamas é antigo e chega ao presente. Conquanto Clemesha tenha afirmado no podcast “Ilustríssima Conversa” que “ninguém em sã consciência pode apoiar o 7 de Outubro”, ela mesma não só apoiou como saudou o 7 de Outubro, argumentando se tratar de ato heroico, que estaria em homologia com o levante judeu do Gueto de Varsóvia[iii].

Perceba, leitor, o grau de repugnância desta falsa equivalência. No entender da professora, os heróis de um dos episódios mais trágicos da histórica judaica, marcado pelo levante de judeus isolados e precariamente armados contra tropas das SS nazistas – as quais queriam exterminar não apenas os habitantes do gueto, mas todos os judeus do mundo, apenas pelo fato de serem judeus -; para Clemesha, estes judeus reencarnam nos terroristas do Hamas, financiados, treinados e armados pelo Irã, os quais, de modo premeditado, massacraram e estupraram civis israelenses das formas mais cruéis imagináveis, com o objetivo declarado de destruir Israel.

A conclusão lógica desse raciocínio, pelo qual os facínoras do Hamas são o equivalente dos combatentes judeus do gueto, não pode ser senão a de que as vítimas judias – mulheres, idosos, crianças, famílias inteiras, desarmadas – sejam, por sua vez, o equivalente das SS nazistas. Este vil expediente é conhecido pela literatura como inversão do Holocausto[i], procedimento retórico que visa produzir o efeito psicológico de, simultaneamente, anulação e retificação: os nazistas são os “judeus (‘sionistas’)”! Trata-se, tal inversão, de uma forma de negacionismo, pois opera assassinando a memória das vítimas, não as fazendo desaparecer (como no negacionismo da direita), mas permitindo que subsistam apenas na medida em que reencarnam na figura de seus carrascos, nos corpos de seus próprios descendentes.

É deste lugar que Clemesha partiu para afirmar a “crise de consciência” do “judaísmo”.

Olvidou-se, a professora, de que o judaísmo é uma religião, uma cultura e um povo com uma história milenar, que precede em muito a existência do Estado de Israel. E que, para os judeus, a palavra “Israel” não designa apenas o Estado moderno (Medinat Israel), mas também um povo, am Israel (o povo judeu) e uma terra-pátria, Eretz Israel (a Terra de Israel, em que os judeus nasceram enquanto povo).

Portanto, confundir, como faz Clemesha, coisas bem diferentes, associando “o judaísmo” aos atos do governo israelense, resvala para o conhecido modus operandi do antissemitismo, caracterizado pela culpabilização coletiva dos judeus, que passam a ser vistos como uma entidade abstrata, indiferenciada e essencializada. É uma forma clara de desumanização, que ignora que nós, judeus, porque humanos, somos plurais em nossas opiniões, em nossas histórias, ideais e, portanto, em nossas identidades e nas relações mediadas com outros judeus e com não-judeus, quer dizer, com nossa consciência.

Clemesha alega que o Estado de Israel possuiria o fabuloso condão de produzir no mundo inteiro a percepção do “judeu coletivo”, com o claro intuito – intuito dela – de, com isso, desresponsabilizar os antissemitas por seu próprio antissemitismo. Eis aqui uma projeção daqueles que, a exemplo da professora, estão recriando, ante os olhos do mundo, o “judeu coletivo” na figura do “sionista coletivo”.

De forma igualmente deturpada, o sionismo aparece no discurso da professora reduzido a uma ideologia colonialista e racista: não como o movimento nacional do povo judeu pelo seu direito — e, diga-se, necessidade histórica — de ter um lar nacional, mas como um empreendimento colonial exclusivamente guiado por um impulso perverso e conspiracionista, do qual todos aqueles judeus (mas, nota bene, esta imputação alcança apenas os judeus) que defendem o direito judaico à autodeterminação seriam, a um só tempo, cúmplices e agentes.

É recorrente no discurso antissionista a negação e o apagamento histórico do imenso significado do sionismo para o povo judeu, enquanto movimento nacional que produziu uma nação e cultura judaicas absolutamente originais em sua terra ancestral. Essa negação, tanto da história, quanto do direito de judeus terem um lar nacional, se apoia, por sua vez, na remoção dos judeus como agentes da sua própria história, o que resulta na singular recusa aos judeus dos direitos nacionais reconhecidos a todos os povos e, por fim, na caracterização dos judeus que vivem fora de Israel não mais como um povo diaspórico, mas como uma coletividade fantasmagórica, membros do “sionismo internacional”, decalque esquerdista do infame “judaísmo internacional” dos nazistas, criado pela sionologia soviética durante a Guerra Fria[ii].

Segundo Clemesha, parte do antissemitismo atual dever-se-ia ao “transbordamento” do ódio ao Estado de Israel (em seu entender, justificado) para o ódio (este injustificado) ao povo judeu. Assim, para a professora de história árabe da USP, os antissemitas atuais o seriam por algo como uma “indignação transbordante”, um bom motivo, porém, não uma boa razão.

Este velho tropo antissemita, o de culpabilizar os judeus (ou alguma entidade a eles ligada) pelo antissemitismo, agora é atualizado pelos antissionistas, que jogam a culpa do seu ódio primitivo em Israel. 

Contudo, para além de não ter explicado porque o “transbordamento” ocorreria exclusivamente com os judeus – e não com outros povos que, embora não devam, estão igualmente sujeitos a ser referidos a governos nacionais que praticam atrocidades no presente (ou praticaram no passado recente), tais como Sudão, Síria, Arábia Saudita, Irã, Rússia, China, Brasil… -; para além disso, a professora parece desconhecer o axioma básico dos estudos sobre racismo e preconceito, a saber, o de que eles nunca são o produto da experiência, mas, ao contrário, o resultado socialmente produzido da incapacidade dos sujeitos racistas de realizarem verdadeiras experiências. No calor, os alimentos apodrecem mais rápido, mas não é o calor a causa de sua podridão, e sim os vermes que neles já habitavam. Assim, entre o crescimento do antissemitismo e o conflito israelense-palestino pode existir
correlação, mas nunca causalidade.

Vale lembrar que indignação e clamor por justiça são prerrogativas dos que possuem dignidade e sede de justiça, exatamente o que falta aos racistas e aos totalitários.

A alegação, sustentada por Clemesha, de que a islamofobia teria “substituído” o antissemitismo no Ocidente faz parte tanto do negacionismo do antissemitismo atual quanto da referida inversão do Holocausto, pela qual palestinos, árabes e muçulmanos em geral tomam o “lugar dos judeus”, constituindo-se nos “novos judeus”. No momento mesmo em que as teorias antissemitas da conspiração explodem mundo afora, tanto à direita (Grande Substituição, Soros, Judaísmo Internacional) quanto à esquerda (“Sionismo Internacional”), Clemesha afirma que elas teriam sido “transferidas” para os muçulmanos.

De fato, tanto a islamofobia quanto o antissemitismo estão crescendo no Ocidente, mas eles constituem preconceitos diferentes, que não se confundem nem tampouco se substituem um ao outro.

Enquanto a islamofobia, salvo engano, se assemelha mais a uma forma de xenofobia: o estrangeiro “bárbaro” e “violento” que, com seus costumes e religião diferentes, ameaçaria os nossos valores e nosso modo de vida; o antissemitismo, como nos alertou Moishe Postone[i], se diferencia dos outros preconceitos por constituir uma espécie de explicação primitiva do mundo, pela qual a culpa pelo mal-estar, angústia e desamparo trazidos pelas abstrações da modernidade e do capitalismo – os quais (modernidade e capitalismo) apesar de ligados, não devem ser confundidos – é atribuída à figura do Judeu, sobre a qual, então, é projetada um superpoder misterioso e ubíquo que, junto com uma perversidade demoníaca, o tornaria responsável por crimes monstruosos, pelas crises do capitalismo, pelas guerras e por praticamente todos os males do mundo.

Ainda segundo Postone, as características supracitadas conferem ao antissemitismo uma dimensão pseudo-emancipatória, dificilmente encontrada em outras formas de racismo. Daí o apelo que o antissemitismo sempre teve para setores da esquerda. O antissionismo opera, simplesmente, através do deslocamento para os significantes “sionismo” e “sionista” de todos os tropos e clichês do antissemitismo clássico.

Por fim, não podemos deixar de comentar as observações que, na entrevista em questão, Clemesha faz sobre a situação dos judeus na contemporaneidade.

Primeiro, a sua insinuação absurda de que, após o Holocausto, os judeus do mundo teriam deixado o lugar da contestação para, depreende-se, ocupar lugares comumente associados ao establishment – ela cita os think thanks, instituições amiúde vinculadas ao capitalismo contemporâneo, sobretudo ao capitalismo americano. Ora, não é preciso um conhecimento muito profundo da histórica judaica do pós-guerra para saber que judeus marcaram (e continuam marcando) fortemente sua presença não só nas universidades, mas também em movimentos sociais por liberdade, justiça e emancipação, tais como a luta contra o Apartheid na África do Sul[ii], a luta pelos Direitos Civis nos Estados Unidos[iii], a luta contra a Guerra do Vietnã[iv], o Maio de 68 francês[v], lutas contra ditaduras latino-americanas[vi], etc.

O apagamento da militância e do pensamento crítico e contestatório judaicos do pós-Holocausto, perpetrado por Clemesha, vai de par com seu elogio ao suposto “retorno” que estes estariam observando nos judeus antissionistas, por ela caracterizados como rebeldes que estariam rompendo o “consenso sionista” (mas o único “consenso sionista” é o direito de Israel existir) e, por isso, sendo duramente reprimidos pela “comunidade”.

Para que a tese acima de Clemesha se torne inteligível, é preciso que se compreenda a cisão (split)[vii] que os antissionistas operam entre “judeus bons” e “judeus maus”. No mundo dos antissionistas, os “judeus maus” constituem a imensa maioria, que estaria aderida ao establishment e às posições de riqueza e poder do capitalismo contemporâneo. Esta grande maioria seria “sionista”, “racista”, “conservadora” e “repressiva”, tendo por referência “a comunidade”.

Os “judeus bons” seriam os judeus que, em oposição à malvada comunidade judaica, aderem incondicionalmente ao discurso de ódio contra o seu próprio povo, isto é, a minúscula minoria de judeus antissionistas, os quais recusam aos judeus israelenses o seu inalienável direito de autodeterminação e, não raro, apoiam o Hamas e o Hezbollah, braços do eixo iraniano em sua guerra de aniquilação contra Israel. Vai sem dizer que estes judeus antissionistas constituem uma peça-chave no discurso de ódio antissionista para legitimar a estigmatização da grande maioria dos judeus do mundo, sem que ela apareça clara e imediatamente como aquilo que é: antissemitismo.

As deturpações e generalizações que alicerçam o discurso antissionista e desumanizam judeus na diáspora e em Israel militam contra os próprios interesses de paz entre judeus e palestinos, ao produzirem um antagonismo maniqueísta que bloqueia a possibilidade do diálogo com as comunidades judaicas, demonizadas por essa visão enganosa de sionismo e judaísmo e, assim, alienadas da luta pela criação de um Estado Palestino e pela paz na região.

Mas a crise é real! Não aquela imputada por Clemesha ao “judaísmo”, associando-o culposamente aos atos do governo de Israel. Vivemos numa época de crise geral de civilização e não apenas de uma ou outra tradição ou cultura. O abismo que se abre entre nós, humanos, não ocorre tanto entre as civilizações, quanto no interior de cada uma delas. A luta entre democracia e autoritarismo, pluralismo e integrismo, abertura crítica e fechamento fanático, liberdade e opressão, justiça e iniquidade é transversal a todas as nações, a todas as religiões e a todas as culturas.

Diante de tal crise, ou aceitamos a travessia e seus riscos, ou permanecemos escravos de vetustas certezas e preconceitos tacanhos, projetando a nossa crise (tornada falência moral) nos outros. Le shaná habá be Yerushalaim (o ano que vem em Jerusalém)!

Post Scriptum – Antes deste artigo, foram publicadas pela Folha duas respostas de autores judeus à fala de Arlene Clemesha na Ilustríssima Conversa[i]. Foi o suficiente para que se formasse uma “campanha de solidariedade” à professora ante um suposto “ataque sionista”, conforme dizia um abaixo assinado. Nenhuma das duas respostas — ou qualquer outra de que tivemos conhecimento — fazia ataques pessoais ou à honra de Arlene Clemesha. Nem, tampouco, aludiam à sua militância “pró-Palestina”. As respostas foram direcionadas à associação entre “judaísmo” e os atos do governo de Israel feita por Clemesha em sua entrevista, bem como a culpabilização de Israel pelo aumento do antissemitismo no mundo.

Mesmo assim, Clemesha, em suas redes, agradeceu às “manifestações de solidariedade” e postou, orgulhosa, as mensagens de apoio que recebia de “importantes figuras públicas”, tais como o jornalista de formação pravdaniana, e jihado-stalo-putinista Breno Altman, que festejou o massacre de 7 de Outubro e pediu mais (“agora é preciso que o Hezbollah entre na guerra, para aumentar as perdas sionistas”), além de, poucos dias depois, referindo-se ao massacre, ter comparado “sionistas” com ratos, o que lhe valeu uma condenação judicial; a diplomata Cláudia Assaf, notória por usar  as suas credenciais do Itamaraty para perpetrar escatológicos discursos de ódio contra Israel e “os sionistas”, estes usualmente equiparados por ela a “vermes” e “demônios” (como nos festejos em suas redes sobre os atuais incêndios nas florestas de Jerusalém, afirmando que eles constituiriam uma “revolta da natureza” contra a “infecção” sionista); e Luciana Genro, deputada estadual do Rio Grande do Sul pelo PSOL, conhecida por seu apoio a ditaduras e a grupos terroristas como o Hamas, bem como por negar o estupro de mulheres judias no massacre de 7 de Outubro.

Mais chocante, entretanto, foi a posição da Congregação da FFLCH-USP (faculdade onde a professora Clemesha leciona), que, em sua reunião de 24/04/25, aprovou por ampla maioria (43 votos a favor, 7 abstenções e 1 voto contra) uma moção de repúdio a uma suposta tentativa de “silenciar” a professora. Na reunião que aprovou tal moção, um professor daquela faculdade perguntou à sua colega, professora Clemesha, qual teria sido a tentativa de silenciamento de que ela estaria sendo vítima, pois que, até então, era do conhecimento deste professor apenas dois artigos de jornal que faziam CRÍTICAS à fala da professora na Ilustríssima.

A resposta de Clemesha, de um cinismo e desfaçatez impressionantes, configurou naquela reunião o que se pode chamar de uma situação rigorosamente kafkiana. Ela afirmou que “o tema veio à tona por um assédio, digamos assim, que eu sofri, mas que, francamente, eu estou acostumada, não estou preocupada com isso” e, rindo, continua: “de verdade, agradeço toda a solidariedade (…). Em nenhum momento eu teria personalizado isso, porque o que eu faço, o trabalho que eu faço é um trabalho polêmico. Eu sei que a gente tá lidando com uma guerra de narrativas aí fora. É um trabalho polêmico, que eu faço do ponto de vista e do lugar onde eu tô na academia (…) e vou levar isto pra sociedade (…). Se eu tivesse só dentro da USP, é claro que isto não criaria reverberação nas mídias sociais. Mas foi a partir de um podcast, gravado na Folha Ilustríssima (…) e gerou aí uma… mas assim, tudo isso é normal. É claro que onde foge ao normal é que a gente tá num contextoem que lobbies, grupos de pressão contra direitos humanos em geral estão atuando. E aqui na USP, na FFLCH, eu acho que é muito bem vindo a gente colocar uma linha, e dizer: ‘daqui não passa!’ O ataque ao professor, o ataque ao seu trabalho, a tentativa de silenciamento, não pode ser aceito aqui na FFLCH.”[ii]

É de cair o queixo. E tem mais. Antes da inacreditável fala acima, uma outra professora, que estava lendo em voz alta o texto da tal “moção”, tentou responder à pergunta do professor supracitado, afirmando que “no caso específico, a gente preferiu deixar a formulação mais vaga, não definir, não mencionar diretamente as pessoas envolvidas, porque isso tem a ver com todos nós. Foi essa a ponderação que foi feita. Mas eu acho que foi bastante divulgado nas redes sociais e por vários outros meios, que a professora Arlene foi vítima de pesadas tentativas de censura e difamação. Circularam cartas de apoio e… apoios variados. Então, o caso concreto (sic!) de que parte essa iniciativa é este.”[iii]

Resumindo, a professora em questão nos “esclarece” que decidiram não nomear os supostos agressores que teriam feito “pesadas tentativas de censura e difamação” à professora Clemesha porque o ataque teria a ver com todos os professores da faculdade, mesmo que a própria reunião que aprovou o texto tenha escancarado publicamente que ele fora elaborado como resposta aos supostos “ataques” e tentativas de “censura” que a professora Clemesha estaria sofrendo.

Por incrível que pareça, os professores da FFLCH que redigiram esta moção teriam “entendido” que não deveriam nomear os supostos agressores porque as supostas vítimas seriam todos eles. Ao mesmo tempo, salta aos olhos que a questão que estava sendo colocada não era sobre a(s) vítima(s), mas sobre o mérito da suposta agressão, que teria feito da(s) vítima(s)…, vítima(s)! Queremos acreditar que o professor de lógica do departamento de filosofia não está envolvido nessa pantomima.

Outrossim, parecem não ter percebido que, se recusando a nomear os supostos agressores, todos os que se manifestaram criticamente à fala da professora Clemesha passam a estar visados pelas acusações por eles assacadas. Afirmamos isto em concessão ao princípio de caridade, querendo evitar a suposição de que não era precisamente este o objetivo dos que redigiram o texto desta moção.

Aqui temos um verdadeiro case study de como opera o discurso antissemita: uma professora, supostamente militante da causa palestina (como vimos acima), numa entrevista sobre o relançamento de seu livro sobre a questão judaica no início do século passado, faz afirmações preconceituosas sobre o judaísmo contemporâneo e também sobre o que considera a causa do crescimento do antissemitismo na atualidade. Em seguida, autores judeus escrevem artigos críticos sobre as opiniões por ela emitidas sobre o judaísmo contemporâneo, o que dá ensejo à formação de raivosos “movimentos de solidariedade” à professora, bem como abaixo-assinado com mais de mil assinaturas, alegando que ela estaria sendo vítima de uma “covarde” tentativa de silenciamento e censura por parte “dos sionistas”. Segundo a própria professora Clemesha, ela teria recebido até uma manifestação de solidariedade do Itamaraty! E, por fim, professores, em uma congregação da faculdade em que estão concentradas as disciplinas de humanidades da USP, votam como manada para aprovar uma “moção de repúdio” a supostas tentativas de censura e silenciamento, as quais eles nem sequer sabem quais são! Pior, Arlene Clemesha, ela própria, não apenas não consegue dizer nada de concreto a respeito de tais “tentativas de silenciamento”, como, ao contrário, afirma que não está “preocupada com isso” e que “tudo isso é normal”! Ou melhor, seria normal, não fosse, segundo a professora, a circunstância de que tais críticas teriam por trás de si (surpresa!) a ação de um sinistro lobby “contra os direitos humanos”.

Professora Clemesha, lobistas são funcionários assalariados que realizam pressão política com vistas a obter resultados que atendam aos interesses de seus patrões. Se a senhora está acusando as pessoas que a criticaram de agir em conluio, numa obscura e espúria ação lobista para silenciá-la e assediá-la, então especifique: quem são estes funcionários? Como e onde eles estão lhe assediando? Pois, perceba, se a senhora não diz “quem”, “como” e “onde”, a acusação de assédio, intimidação e tentativa de silenciamento se inverte, de modo que passa a ser a senhora e seus “solidários” apoiadores os que estão assediando e tentando intimidar autores judeus, apenas por criticarem a forma com que a senhora falou de, pasmem, judeus e judaísmo, alegando, como sempre, que eles agiriam sob o comando de um poderoso lobby judaico, corrigimo-nos, “sionista”.

A “moção de repúdio” que os professores da congregação da FFLCH aprovaram afirma estar baseada na defesa da liberdade do pensamento crítico, da liberdade de cátedra e no respeito pela palavra do outro. É este o mundo invertido que está, novamente, sendo imposto aos judeus, no qual quase nada é o que parece e quase tudo é projeção, sobretudo por aqueles e aquelas que, covardemente, embalam os seus preconceitos e suas paixões tristes na tão injustamente vilipendiada bandeira da causa palestina.

NOTAS E REFERÊNCIAS



[i] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2025/04/judaismo-em-crise-preconceito-na-religiao-do-outro-e-refresco.shtml e https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2025/04/crise-de-consciencia-e-individual-judaismo-e-cultura-diversa.shtml .

[ii] https://www.youtube.com/watch?v=fmdo7Tcq0_8 . A referida fala está entre 1´:13´´:23´´´ e 1´:16´´:17´´´. Os grifos são nossos.

[iii] Idem. Esta fala se encontra nos intervalos entre 1´:12´´:17´´´e 1´:13´´:22´´´.


[i] Cf. Ver a entrevista de Moishe Postone, “Sionismo, Antissemitismo e Esquerda” https://www.marxists.org/portugues/postone/2011/09/40.pdf

[ii] https://www.jewishvoiceforlabour.org.uk/article/the-jewish-left-in-apartheid-south-africa/ . Em 1993, em um congresso de deputados judeus da África do Sul, Nelson Mandela afirmou: “os sul-africanos de ascendência judaica têm sido, historicamente, representados de forma desproporcional entre nossos compatriotas brancos na luta de libertação”. E, no mesmo congresso, o gigante político e moral sul-africano fez sua conhecida afirmação: “Como movimento, reconhecemos a legitimidade do nacionalismo palestino, assim como reconhecemos a legitimidade do sionismo como movimento nacional judaico.  Insistimos no direito do Estado de Israel de existir dentro de fronteiras seguras, mas com igual vigor apoiamos o direito palestino à autodeterminação nacional.” Em abril de 1994, no primeiro final de semana após vencer as eleições presidenciais, Mandela visitou uma sinagoga, onde apelou para todos os judeus sul-africanos que haviam sido expatriados, que voltassem para a África do Sul, com exceção “dos judeus que partiram para sua terra natal”. Ver a matéria de Raphael Ahren no The Times of Israel: “Nelson Mandela was close to jews, resolutely loyal to palestinians”, onde a complexa relação dos judeus sul-africanos com a luta contra o regime do apartheid é brevemente comentada. https://www.timesofisrael.com/nelson-mandela-was-close-to-jews-resolutely-loyal-to-palestinians/ . Alertamos, contudo, que nesta matéria do Times of Israel existe um erro grosseiro. Pois, em certo momento, um professor entrevistado afirma, erroneamente, que Mandela teria “deixado claro que aqueles que são inimigos dos judeus (jews) não são necessariamente seus inimigos”. Quando, na realidade, o que Mandela disse foi: “nós temos muitos membros da comunidade judaica em nossa luta. E eles tem ocupado posições muito altas. Mas isto não significa dizer que os inimigos de Israel (grifo nosso) são nossos inimigos. Nós recusamos tomar esta posição. Você pode chamar isto de uma questão política ou moral, mas qualquer um que muda seus princípios de acordo com quem ele está lidando, este não é um homem capacitado para liderar uma nação.” No vídeo seguinte, no intervalo de 9´:13´´ e 10´:04i] Ver Lesley Klaf. Holocaust Inversion and Contemporary Antisemitismo https://fathomjournal.org/holocaust-inversion-and-contemporary-antisemitism/

[ii]  Ver Izabella Tavarovky, Soviet Anti-Zionism and Contemporary Left Antisemitism. https://fathomjournal.org/newsletter/fathom-highlight-izabella-tabarovsky-on-soviet-anti-zionism-and-contemporary-left-antisemitism/ ).´´.

[iii] https://www.gilderlehrman.org/history-resources/essays/role-jewish-americans-civil-rights-movement

[iv] https://www.timesofisrael.com/50-years-ago-upstart-rabbi-used-jewish-law-to-tell-senate-to-end-vietnam-war/ , e também https://muse.jhu.edu/article/592924/summary e também https://www.timesofisrael.com/50-years-after-the-end-of-the-vietnam-war-meet-an-iconic-but-unknown-jewish-activist/

[v] https://www.lemonde.fr/archives/article/1988/07/12/un-colloque-de-la-revue-passages-le-mouvement-de-mai-68-fut-il-une-revolution-juive_4097927_1819218.html

[vi] Para o caso da Argentina, ver https://www.elmundo.es/cultura/2014/03/23/532e9ee222601d690f8b456f.html e também https://www.morasha.com.br/es/comunidades-de-la-di%C3%A1spora/las-victimas-de-la-guerra-sucia.html . No Brasil, mesmo a comunidade judaica sendo diminuta, nomes como Jacob Gorender, Salomão Malina, Maurício Grabois, Iara Iavelberg, Ana Rosa Kucinski, Vladimir Herzog, e outros, são conhecidos por sua corajosa luta contra a ditadura militar. Também intelectuais judeus como Paul Singer, Ruy e Boris Fausto, Michel Löwy, Roberto Schwarcz, Bernardo Kucinski, Mário Schenberg, o próprio Jacob Gorender, e tantos outros que, na universidade e fora dela, se dedicaram ao combate da ditadura no campo das ideias e da cultura.

[vii] Ver Melanie Klein, Inveja e Gratidão e outros ensaios, editora UBU, p.p. 19-49.


[i] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2025/04/judaismo-vive-crise-de-consciencia-com-genocidio-em-gaza-diz-arlene-clemesha.shtml

[ii] https://www.1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft0402201110.htm

[iii] https://x.com/search?q=brasil%20de%20fato%20arlene%20clemesha&src=typed_query


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