Israel cairá para a extrema direita sem um gemido?

Quando os livros forem escritos sobre como Israel se tornou um abismo iliberal, as ferramentas que Netanyahu forneceu à extrema-direita serão vistas como o ponto de virada

[ por Esther Solomon | Haaretz | 30|10|2022 | traduzido pelo PAZ AGORA|BR | www.pazagora.org ]

O partido intitulado ‘Sionismo Religioso‘ – racista, supremacista, homofóbico, teocrático, de extrema-direita – prevê duplicar seu número de cadeiras no Knesset e se tornar um jogador-chave, ou até um kingmaker, numa coalizão governante de Netanyahu.

Seu pai ideológico, Meir Kahane, não morreu pelas balas de um assassino em Nova York em 1990. O grito de guerra do partido Kach que glorificou seu legado – o mesmo partido em que seu herdeiro contemporâneo mais proeminente, Itamar Ben-Gvir, cresceu e serviu; o mesmo partido que foi proibido de participar nas eleições de Israel e depois foi declarado como grupo terrorista por Israel e pelos Estados Unidos – é “Kahane Vive”.

Mas o kahanismo, a variante judaica do fascismo, era, até recentemente, periférico. Certo, o tema do direito judaico, quando não a supremacia, corre nas veias do movimento messiânico de assentamentos. Certo, o assassino de Yitzhak Rabin foi criado no mesmo esgoto fundamentalista.

É verdade que os protestos furiosos [endossados por Netanyahu] contra o julgamento de Elor Azaria em 2017, o soldado que matou a sangue frio um assaltante palestino já neutralizado, expuseram certas profundezas israelenses de desdém pelo Estado de Direito e pelos Direitos Humanos básicos. É verdade que Benjamin Netanyahu se envolveu em décadas de incitação incessante contra qualquer um que considerasse “insuficientemente leal” a Israel – a mesma linguagem empregada por Ben-Gvir.

No entanto, embora seu ethos tenha se espalhado, o Kahanismo no qual Ben-Gvir fundou o ‘Otzmá Yehudit‘ (“Poder Judeu”) ainda não foi formalmente representado no Knesset, pois teve apenas 1,88% dos votos em 2019. Desde a contagem de 26,000 votos de Kahane em 1984, a extrema-direita tinha crescido no parlamento, mas ainda era uma pequena franja.

Isto é, até Netanyahu tomar a extrema-direita kahanista pela mão, comprar-lhes roupas novas e levá-los diretamente aos corredores do poder.

Em seu desespero por absorver até o último voto à direita, para estabelecer um governo flexível o suficiente para interferir, quando não anular, seu julgamento criminal, Netanyahu projetou um caminho político para tirar a extrema-direita do gelo. Ele diligentemente administrou suas fortunas, até mesmo hospedando Ben-Gvir em sua mansão em Cesareia.

Ambos estão agindo de acordo com um manual bem conhecido: primeiro, escondem a marca de extrema-direita, depois a normalizam.

Ben-Gvir aplica o mesmo truque. Ele já não se gaba abertamente de como também poderia ter “chegado” [assassinado] a Rabin. Relutantemente removeu um retrato de Baruch Goldstein, o assassino que invadiu uma mesquita em Hebron e metralhou sistematicamente 29 muçulmanos em seu local de orações. [Durante anos e até recentemente o retrato de Goldstein – cujo túmulo é reverenciado como se fosse o de um santo – decorava sua sala].

Mas o extremismo é irreprimível e o “detox” não passa da pele. Assim como o orador do Senado de Meloni se apega à sua coleção de memorabilia Mussolini, e Viktor “bom para os judeus” Orbán inclui o aliado nazista da Segunda Guerra Mundial Miklós Horthy em sua lista dos principais estadistas húngaros, Ben-Gvir pode não citar o nome Kahane tantas vezes, mas ele ainda é seu abnegado discípulo.

E a facilidade rápida com que ele saca a arma contra qualquer árabe que considere uma ameaça, desde um manifestante a um guarda de segurança ou um palestino da Cisjordânia, são testes úteis para seus Instintos.

Primo Levi escreveu que o fascismo estava “muito longe de estar morto. Só estava escondido… mantendo silêncio, para reaparecer mais tarde sob um novo disfarce, um pouco menos reconhecível, um pouco mais respeitável”. Esse é o modus operandi da “nova” extrema direita internacional, e é o caminho que o campo de Ben-Gvir trilha também, embora suas facetas brutas sejam muito menos polidas do que na Itália, Suécia ou Alemanha.

O segundo passo, a normalização, foi idealizado por Netanyahu, auxiliado por grande parte da grande mídia, que tem tratado Ben-Gvir como uma mera curiosidade, um menino travesso. No meio de apresentações em intermináveis programas de TV e rádio onde ele nunca é apresentado como “extremista” ou “extrema-direita” (e o apresentador que, neste fim de semana, o descreveu de acordo com uma contabilidade factual de seu registro  foi chamado para uma audiência disciplinar), e convidado para um programa para comemorar o assassinato de Rabin, Ben-Gvir é até convidado a compartilhar suas receitas favoritas em programas de culinária. É um retrato perfeito da domesticação da extrema-direita.

Para os eleitores mais jovens, essa extrema direita normalizada é agora uma parte natural do ambiente político de Israel, e é parte da razão para um voto crescente esperado para Ben-Gvir.

Esse entusiasmo é, em parte, resultado do fracasso da esquerda em oferecer uma alternativa igualmente apaixonada à Ocupação entrincheirada e à hostilidade em relação aos direitos humanos palestinos, em vez da luta em série, mesquinharia e apatia que muitas vezes apresenta. Para eles, estamos em uma era pós-Ocupação. A linguagem da redução de conflitos, de Dois Estados – muito menos de Paz – não tem mais tração, parecendo um artefato de uma era distante.

Alguns desses jovens fãs de Ben-Gvir, em uniformes do exército, enfrentando atiradores de pedra e pistoleiros, poderiam ter perguntado por que estavam arriscando suas vidas protegendo assentamentos ilegais. Mas assim como Ben-Gvir, a Ocupação foi normalizada. Eles são soldados em uma guerra contra os palestinos, e querem saber quem lhes dá cobertura. E Ben-Gvir oferece esse apoio incondicionalmente.

Normalizar a extrema-direita é um ato irreparável e imperdoável.

Em breve, se as pesquisas forem comprovadamente corretas, também testemunharemos a falácia de apaziguar, desejar ou falar sobre o significado total dessa mudança. Será uma contradição impossível para todos, desde as comunidades judaicas da Diáspora até o Congresso, até a indústria de Hasbará. Veremos também o deleite dos aceleradores, da extrema-direita e da extrema-esquerda, que, por razões opostas, querem o conflito israelense-palestino, e as relações internacionais de Israel, consumidas pela limpeza do fogo.

“Dê-nos as ferramentas e terminaremos o trabalho”, disse Churchill em um apelo a Roosevelt por ajuda na luta contra o nazismo e o fascismo. Quando os livros forem escritos sobre como Israel – seguindo muitas democracias européias, e talvez também os Estados Unidos em 2024 – cairam em um abismo iliberal, serão as ferramentas que Netanyahu forneceu à extrema-direita o ponto de virada para sua tentativa sincronizada de acabar com o que já é uma democracia disfuncional.

Houve uma onda de choque quando o The New York Times publicou recentemente uma pesquisa mostrando que os eleitores reconheceram a crescente ameaça à democracia dos EUA, mas não priorizariam votar para deter esse declínio. Aqui em Israel, os eleitores estão correndo para saudar esse colapso democrático.

Em breve veremos se o ‘Golem’ Ben-Gvir, que Netanyahu construiu, não só dominará seu mestre, mas também os fundamentos básicos da democracia israelense, e quantas vidas ele poderia ceifar no processo.

[ por Esther Solomon | Editora-chefe do Haaretz em inglês | 30|10|2022 | traduzido pelo PAZ AGORA|BR | www.pazagora.org ]

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