Netanyahu leva democracia israelense ao Caos

 

Sob o disfarce de democracia, Netanyahu está distorcendo o próprio caráter do Estado de Israel, plantando as sementes do caos anárquico, do ódio e da violência, indomáveis.

 

[ por DAVID GROSSMAN  |  Haaretz  |  28|12|2022  |  traduzido pelo PAZ AGORA|BR   www.pazagora.org ]

 

Não estou falando apenas da promulgação de novas leis, por mais extremas e ultrajantes que sejam, mas de uma mudança mais profunda e fatídica, uma mudança em nossa identidade, uma mudança no caráter do Estado. E a eleição não foi disputada em função de tal mudança; não foi para isso que os israelenses foram às urnas votar.

 
 
Ao longo das negociações para formar um novo governo, um versículo do livro de Isaías tem passado constantemente pela minha cabeça – “Ai dos que chamam o mal de bem e o bem de mal; que transformam as trevas em luz, e a luz em trevas; que se transformam o amargo em doce, e o doce em amargo!”
Uma faixa – perto da entrada da Suprema Corte de Israel em Jerusalém – pede na terça feira a Benjamin Netanyahu e seus parceiros de coalizão religiosa-nacionalista que ajam contra o ‘excesso judicial’:  “Você prometeu – agora faça isso acontecer! Reforma do sistema de Justiça agora!” 

Ao fundo, como uma tortura de água chinesa, ouço repetidamente o deputado Moshe Gafni proclamando: “Metade do povo estudará Torá e metade servirá no exército”. A cada vez, meu cérebro fica carbonizado, desta vez em parte por razões completamente pessoais.

As negociações, que mais se assemelhavam a uma orgia de saques, cintilaram diante de nossos olhos em imagens rápidas, em flashes de uma lógica estranha e provocativa – “a cláusula de substituição [que autoriza maioria simples do Knesset a derrubar decisões do judiciário“, “a lei de discriminação”, “Smotrich será o árbitro final na construção na Cisjordânia”, “Ben-Gvir poderá criar uma milícia privada na Cisjordânia, ” “O criminoso em série Dery será capaz…” Num piscar de olhos, num frênesi  crescente.

Sabemos que alguém está nos enganando neste exato momento. Que alguém está embolsando não apenas o nosso dinheiro, mas o nosso futuro e o dos nossos filhos, a existência que queríamos criar aqui – um Estado onde, apesar de todas as suas falhas, deficiências e pontos cegos, a possibilidade de se tornar um país civilizado, igualitário, com o poder de absorver contradições e diferenças, que com o tempo conseguirá até libertar-se da maldita Ocupação, ocasionalmente brilha. Um país que poderia ser judeu e crente e secular, uma potência de alta tecnologia, tradião e democrática, e também um lar bom para suas minorias. Um Estado israelense onde a multiplicidade de dialetos sociais e humanos não criará necessariamente medos, ameaças mútuas e racismo, mas, em vez disso, levará à fertilização cruzada e ao florescimento.


Agora, depois que a poeira da tempestade ter assentado, depois que as dimensões da catástrofe tiverem sido reveladas, Benjamin Netanyahu poderá estar dizendo a si mesmo que, depois que sua semeadura do caos atingir seus objetivos – destruir o sistema legal, a polícia, a educação e qualquer coisa que emita um cheiro de “esquerdismo” – ele será capaz de voltar no tempo, apagar ou pelo menos moderar a visão de mundo louca e desonesta que ele mesmo criou e voltar a nos liderar de uma forma adequada, legal e racional. Voltar a ser o adulto responsável em um país bem administrado.


Mas, nesse ponto, ele muito bem poderá descobrir que, do lugar para o qual nos trouxe, não há retorno. Será impossível eliminar ou mesmo domar o caos que ele criou. Seus anos de caos já gravaram algo tangível e assustador na realidade, nas almas das pessoas que viveram isso.

Eles estão aqui. O caos está aqui, com toda a sua força de sucção. Os ódios internos estão aqui. A aversão mútua está aqui; assim como a violência cruel em nossas ruas, em nossas rodovias, em nossas escolas e hospitais. As pessoas que chamam o bem de mal e o mal de bem também já estão aqui.


A Ocupação também evidentemente não terminará no futuro previsível; já é mais forte do que todas as forças agora ativas na arena política. O que começou e foi aperfeiçoado com grande eficiência [nos Territórios Ocupados] agora está se infiltrando aqui. A escancarada força da anarquia desnudou suas presas, na democracia mais frágil do Oriente Médio.

 

David Grossman, veterano ativista do PAZ AGORA e de outros movimentos israelenses pacifistas e de direitos humanos, é um dos expoentes do diálogo israelense-palestino e um dos escritores israelenses mais reconhecidos no mundo 

 

[ por DAVID GROSSMAN  |  Haaretz  |  28|12|2022  |  traduzido pelo PAZ AGORA|BR   

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