Antidemocrático, o antissemitismo não se adjetiva.

O que singulariza o ódio aos judeus são os estereótipos – as associações generalizantes. A maior parte deles muito antigas e apenas renovadas sob novas circunstâncias

[ publicado pelo NEXO JORNAL  |  14|01|2023  ]

Ações e discursos antissemitas estão em alta em várias partes do mundo, como mostram diversos relatórios de organizações de monitoramento e conscientização. Essas práticas não são isoladas, mas integram programas de supremacismos nacionalistas, religiosos e racialistas que promovem uma deterioração democrática e a amplificação de intolerâncias e discursos de ódio.

Poucos brasileiros, ao menos entre os que se opõem a esses programas, discordariam desse fato. Mas costumamos imputar as faltas aos outros e temos dificuldade de reconhecer nossos próprios preconceitos que levam a julgamentos apressados. Infelizmente, essas práticas não são restritas a supremacistas e têm sido realizadas por pessoas com diferentes posições sociais e políticas, frequentemente com o intuito de uma crítica social que confunde conduta individual com características supostamente inerentes a uma coletividade.

Parece-nos, portanto, fundamental elucidar os aspectos que caracterizam as operações por trás do antissemitismo. Toda discriminação se alimenta do que especialistas chamam de alterização: a junção de uma série de características de personalidade, caráter, comportamento e aspectos físicos e intelectuais em uma construção imaginária, mas com muitos efeitos práticos, de uma coletividade considerada diferente. A partir disso, criam-se estereótipos, lentes pelas quais pessoas exageram atributos e enquadram todos os indivíduos dessa coletividade.Como em outros casos de racismo, no antissemitismo assume-se que há uma “comunidade” una, indivisível, imanente e com origem comum que seria responsável por características morais, éticas, intelectuais e ideológicas dos indivíduos pertencentes aos grupos judaicos.

Como consequência, qualidades e faltas são imputadas à pertença nessa coletividade. A obsessão pela “origem” reduz o indivíduo ao grupo. Se alguém é admirável, pela lógica do antissemitismo, é porque tem origens judaicas. Se alguém pratica algum erro, é injusto, ou possui uma posição com a qual a pessoa discorda, igualmente, será porque tem origens judaicas. Toda divergência interna ao grupo, ou mesmo crítica, é apagada.

O QUE SINGULARIZA O ANTISSEMITISMO SÃO OS ESTEREÓTIPOS – AS ASSOCIAÇÕES GENERALIZANTES. A MAIOR PARTE DELES MUITO ANTIGAS E APENAS RENOVADAS SOB NOVAS CIRCUNSTÂNCIAS

Essas operações não diferem, essencialmente, de outras racializações e essencializações de coletividades. O que singulariza o antissemitismo são os estereótipos – as associações generalizantes. A maior parte deles muito antigas e apenas renovadas sob novas circunstâncias. A responsabilização pela execução de Jesus Cristo há mais de dois mil anos é uma das formas mais longevas, com muita força desde a Idade Média. Mas esse tema não é o único. A noção de que, embora um grupo numericamente reduzido, os judeus detêm grande poder político e econômico no mundo é invocada há séculos. É muito comum no Brasil conceber os judeus ora como controladores das finanças globais, ora como revolucionários subversivos, em ambos os casos sem lealdade ao país ou sujeitos a uma dupla lealdade, trabalhando para potências estrangeiras. Essa associação, aliás, é muito mais frequente para judeus do que semelhantes ilações, igualmente equivocadas, envolvendo outras coletividades brasileiras com ascendência estrangeira.

Nas últimas décadas, a situação ainda se complica com uma confusão entre judeus, israelenses e ações do Estado de Israel. A partir dela, judias e judeus de todo o mundo são questionados por ações praticadas por agentes do Estado de Israel. Pretende-se, assim, tornar todos os judeus cúmplices das violações de direitos associadas aos territórios palestinos ocupados ilegalmente há 55 anos e da segregação às populações árabes em Israel. Isso independentemente de nossa militância diária contra esse estado de coisas. É fundamental distinguir judeus e israelenses e reconhecer que muitas judias e judeus, em Israel e fora dele, desaprovam essas ações ou os planos do recém-empossado governo..

Ao contrário, nós, Judeus e Judias pela Democracia – SP estamos muito preocupados com essa situação, assim como em relação às situações de privação de direitos e segregação no Brasil. Cultivamos alianças em condições de respeito mútuo para essas lutas em que nos engajamos diariamente. Para tanto, é necessário que fique claro que o antissemitismo, como toda forma de discriminação, não se adjetiva. Seus efeitos são os mesmos, independentemente de quem o faça e suas intenções.

  • André Vereta-Nahoum é professor e pesquisador do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP)
  • Breno I. Benedykt é mestre em Educação pela Universidade de São Paulo e doutorando em Filosofia pela mesma Universidade, com estágio de doutoramento na Universidade de Paris-Nanterre. Pesquisa relações entre estética e política no pensamento contemporâneo
  • Clarisse Goldberg tem formação em Psicologia (UCPel/RS) e especialização em Jornalismo Literário. Atua nas áreas de comunicação, cultura e direitos humanos desde 1990. Também desenvolve projetos ligados à literatura infanto-juvenil. É membro-fundadora dos grupos Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil, Movimento de Mulheres Judias Me Dê Sua Mão e Judias e Judeus pela Democracia-SP
  • Leana Naiman Bergel Friedman é psicóloga com especialização em terapia e práticas narrativas individual e de grupo. Educadora e facilitadora de conversas colaborativas. Instrutora do Rio Abierto – Centro de Desenvolvimento Humano e Movimento Corporal. Ativista de direitos humanos, membro apoiadora da Comissão Arns de Direitos Humanos
  • Lia Vainer Schucman é doutora em psicologia social pela Universidade de São Paulo. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Autora dos livros “Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo: Branquitude, Hierarquia e Poder na Cidade de São Paulo” (Veneta, 2020) e Famílias Interraciais: tensões entre cor e amor (EDUFBA, 2018)
  • Silvio Oksman é arquiteto e urbanista. Pesquisa temas relacionados à preservação de patrimônio cultural. Atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado na FAU-USP. É membro do GT DOI-CODI e Coordenador do Comitê para Preservação do Patrimônio do Século XX do ICOMOS Brasil

Os autores são membros do coletivo Judias e Judeus pela Democracia – SP

[ publicado pelo NEXO JORNAL  |  14|01|2023  ]

 

Comentários estão fechados.