JUDAÍSMO DIASPÓRICO E JUDAÍSMO ISRAELENSE (Bernardo Sorj) – parte II : Mutações

Conferência Apresentada na FFLCH da USP em 06/11/2023 por Bernardo Sorj,
Professor Doutor em Sociologia na UFRJ

II – Mutações do Judaísmo Diaspórico e Israelense

As diásporas são realidades em permanente mutação, tanto pelas transformações sociais no conjunto da sociedade e do sistema internacional, como no interior das comunidades judias. A identidade judia moderna, e estamos nos referindo a um período histórico que se estende do século XVII até os tempos atuais (com cronologias diferentes em cada país e região), expressou os conflitos de uma transição que carregava dois desafios. De um lado um mundo que se abria como promessa de igualdade, mas que na prática mantinha em boa parte da população não judia os preconceitos do passado ou atualizados por novas ideologias racistas, e de outro lado, os laços subjetivos que cada judeu à sua maneira mantinha com a tradição, incluindo relações familiares e comunais.

A possibilidade de integração ativa na sociedade gerou um duplo movimento: a) a reconstrução da tradição judaica, reinterpretando-a de forma a permitir absorver os valores modernos de forma o menos contraditória possível com os novos valores hegemônicos, b) a modificação das subjetividades de forma a integrar a realidade de um mundo onde a divisão judeus/não judeus (cristalizada tanto nas normas religiosas como na experiência imposta pelo mundo exterior) se faziam cada vez menos presentes na convivência cotidiana.

Com a eliminação, pelo Holocausto, de grande parte do judaísmo da Europa central e oriental, os judeus nas Américas e em grande parte da Europa são descendentes de emigrações recentes, segunda, terceira e quarta geração. E cada geração se integrou cada vez mais na cultura nacional. Se os recém-chegados falavam Yidish (ou ladino) e seu meio social era majoritariamente judeu, os filhos e ainda mais seus descendentes deixaram de falar a língua de seus pais, se profissionalizaram e expandiram seus campos de atividades, onde a origem étnica perdeu sua relevância.

A própria palavra diáspora mal expressa o sentimento atual de boa parte dos judeus. Diáspora é um conceito muito distante da palavra pela qual durante quase dois milênios era chamada a situação de viver fora da terra de Israel, Galut. Galut é exílio, um castigo de Deus que algum dia acabará com a chegada do Messias. Diáspora é uma constatação neutra, a indicação de que o grupo se encontra disperso, sem conotação teológica nem teleológica.

Junto com a crescente integração social houve, naturalmente, uma diminuição da intensidade das caraterísticas anteriores que tipificavam a psique e o sentimento de estar no mundo da condição judia moderna. A igreja católica, que por milênios promoveu o antissemitismo, modificou sua relação com o judaísmo, e as sociedades avançaram no sentido de uma maior secularização e respeito pelos direitos humanos, apesar de ruídos no sentido contrário.

O sentimento de mundo e a sensibilidade associada a condição diaspórica, caraterísticas que obviamente os judeus nunca tiveram o monopólio, passaram a ser compartilhadas e valorizadas por amplos setores da sociedade. Com os processos de globalização, a capacidade de conviver com culturas diferentes passou a ser uma habilidade cada vez mais demandada, em particular para a elite globalizada, e os meios de comunicação bombardeiam constantemente com notícias sobre os mais diversos rincões do globo.

O antissemitismo certamente não desapareceu, mas na maioria dos países não ocupa um lugar relevante no cotidiano dos judeus, se bem o peso crescente de líderes e partidos de extrema direita em muitos países democráticos, que incluem grupos racistas e antissemitas, cause apreensão. Por sua vez, se expandiram as lutas de outros grupos sociais que se sentem vítimas da história, e que competem pelo reconhecimento e o respeito da diversidade.

Não que tenham desaparecido os sentimentos e a subjetividade associada a ser parte de uma minoria cognitiva, mas certamente foram amortizados.

Mas se a diáspora não é mais o que foi no passado, o Estado de Israel está longe da normalidade imaginada pelos idealizadores do Sionismo. A história, como sempre, se mostra mais complexa e ambígua que as ideologias.

O Estado de Israel, como qualquer outro estado nacional, não é igual aos outros. Ele foi construído na suposição da unidade do povo judeu. A chegada de emigrantes dos mais diversos países mostrou a enorme diversidade e heterogeneidade cultural dos judeus. A onda de emigrantes advinda dos países árabes, logo após a independência, e que dobrou a população do país, era culturalmente distante do judaísmo secular europeu que montou as bases do Estado, e que ocupava os cargos dirigentes, gerando ressentimentos que se traduziram em partidos políticos étnicos tradicionalistas. Processo paralelo se deu com a emigração da União Soviética que chegou a partir dos anos oitenta, de orientação secular e com uma orientação de direita.

O sionismo surgiu da diferenciação entre identidade nacional e identidade religiosa, que estiveram amalgamados por quase três milênios. O sionismo, um movimento fundamentalmente secular, decidiu não esperar a chegada do Messias, retirando o destino dos judeus das mãos de Deus.

A separação entre estado nacional e religião, contudo, nunca foi claramente resolvida, sobretudo a relação entre judaísmo e democracia. Pelo contrário, com a passagem do tempo ela ficou cada vez mais confusa. Inicialmente, porque o judaísmo religioso que foi a referência da liderança política dos líderes israelenses era o judaísmo rabínico tradicional e não as correntes reformistas e conservadoras embebidas dos valores da modernidade. Com a criação do Estado, parte das competências de direito civil e da definição de quem é judeu foram transferidas para as autoridades religiosas ultra-ortodoxas. Posteriormente, com a conquista dos territórios palestinos, a religião foi utilizada para justificar políticas de colonização em nome de um passado bíblico e, sobretudo, alimentou um nacionalismo religioso messiânico, que convergiu com o nacionalismo extremo secular sionista.

As relações conflitivas entre os princípios de um estado democrático secular e as tradições religiosas pregressas não é alheia a maioria dos países democráticos. No caso de Israel, a relação ficou mais conflitiva pela escolha, no momento de criação do estado, como único representante e interlocutor legítimo da religião judaica, os judeus ultraortodoxos. Escolha, essa, que aguçou o potencial destrutivo da presença de narrativas e interesses religiosos na vida política.

Em Israel a visão da diáspora como uma longa noite de perseguições, que devia ser esquecida, promovido pela ideologia sionista, conviveu sempre com o sentimento cotidiano dos israelenses de que a vida na diáspora era cheia de oportunidades e conforto. Não podemos esquecer que o movimento migratório para Israel, nos grandes números, foi de países com padrões de vida mais baixo ou com perseguições políticas. Os idealistas foram minoritários. E hoje se calcula que em torno de um milhão de cidadãos israelenses, boa parte deles judeus, vivem hoje fora de Israel, sendo um quarto deles nativos.

Encontros e desencontros entre a diáspora e o Estado de Israel

A particular sensibilidade da condição diaspórica foi mudada pela existência do Estado de Israel. Os judeus finalmente possuem um Estado próprio ao qual podem se mudar se assim o desejarem, sem ter que esperar a chegada do Messias. Na diáspora, sobretudo, a existência de Israel produziu um sentimento de empoderamento associado a capacidade militar do país e de orgulho com suas realizações no campo científico e tecnológico. Ele teve um efeito difícil de exagerar na psique de um povo que viveu durante dois milênios sem capacidade de se defender da violência da maioria. Paradoxalmente, se a existência do Estado de Israel produziu um empoderamento psicológico se transformou também, dado os desafios geopolíticos do país, em fonte renovada da angustia existencial. O país que gerou um sentimento de segurança, ao mesmo tempo, não eliminou, pelo contrário, as inseguranças e medos enraizados na psique coletiva.

O Estado de Israel passou a ser parte da identidade do judeu diaspórico, isto é, sua existência é uma referência que mobiliza os mais diversos sentimentos, mas nunca a indiferença, e, quase sempre, de preocupação com seu destino.

Um dos efeitos secundários sobre a identidade diaspórica produzidos em parte pelo Estado de Israel foi a perda, por parte de setores da comunidade judaica, do que podemos chamar a sabedoria histórica incorporada à condição de um grupo minoritário. Em particular, setores de maior sucesso econômico que temperavam seus interesses de classe com uma maior sensibilidade social e cultural perante as causas de setores  subalternos passaram a apoiar agendas de extrema direita. Nesta nova constelação, setores das comunidades judaicas se alinham com líderes antidemocráticos na política nacional e apoiam as posições de governos de direita de Israel, distantes dos valores e dos interesses de longo prazo da vida na diáspora.

Paradoxalmente, o sentimento de insegurança existencial que era associado a condição diaspórica, se manteve até com maior intensidade em Israel, pelo risco representado por um meio ambiente hostil, incluindo países e organizações que declaram a vontade de destruição da “Entidade Sionista”. Igualmente paradoxal, parte do antissemitismo vivido hoje na diáspora se origina em grupos islâmicos ligado ao conflito no Oriente Médio.

O vórtice que une Israel e a diáspora é o Holocausto. A destruição do Segundo Templo foi interpretada pelos rabinos como dando início ao Galut e que terminaria com a chegada do Messias. O drama humano muito maior que foi o Holocausto não levou a nenhuma mudança maior nas narrativas das diversas correntes religiosas. Elas ficaram entre o silêncio e o reconhecimento que estamos em face do indecifrável, quando não em explicações indecentes, feitas por alguns poucos rabinos ultraortodoxos, como sendo um castigo divino. Para a maioria dos judeus a resposta dada pela história foi de ordem secular.

Para boa parte dos judeus da diáspora, a lição do Holocausto foi que somente o respeito dos direitos humanos e a democracia asseguram um ambiente em que podem prosperar e onde não serão perseguidos. No Estado de Israel, o Holocausto foi associado com os riscos de destruição do país por seus vizinhos e a necessidade de possuírem forças armadas que assegurem sua sobrevivência. Israel, que deveria ser um lugar onde os judeus estariam a salvo das perseguições, dada a disposição de países do mundo muçulmano e de grupos palestinos de destruí-lo, criou um elo que uniu a maioria dos judeus do mundo em torno do apoio e da defesa do país.

O risco existencial de Israel criou um vínculo profundo na diáspora, mas também, inversamente levou a que Israel dependa de seu apoio. A visão de Ben-Gurion no início dos anos cinquenta se mostrou equivocada, assim como a de muitos israelenses, como, por exemplo, o escritor A. B. Yehoshua. Ben-Gurion afirmou que com a criação do estado de Israel o sionismo deixaria de existir e que os judeus deviam fazer alia ou se assimilar. Acontece que a diáspora não só continuou a existir como –em particular a comunidade nos Estados Unidos–, passou a ser um apoio importante da política externa israelense. A. B. Yehoshua, por sua vez, sempre expressou seu desprezo pela diáspora, afirmando que somente em Israel podia existir uma vida verdadeiramente judia. Afirmação curiosa vindo de um judeu secular e humanista, considerando que somente na diáspora todas as correntes do judaísmo convivem e florescem sem discriminação entre elas, e o judaísmo não é utilizado por correntes políticas para justificar posturas nacionalistas xenofóbicas e racistas.

A defesa dos direitos humanos na diáspora e o uso da força militar em Israel, são duas faces da mesma experiência histórica, que em situações como as relacionadas a questão palestina, produz rasgos e divisões no interior das comunidades judias.

O Estado de Israel se auto delegou a representação do povo judeu, e boa parte das instituições judaicas da diáspora foram transformadas em instrumentos de defesa do Estado de Israel perante a opinião pública, levando ao apoio e justificação de toda e qualquer política do governo de Israel e a perda de autonomia política.

Seja em temas gerais como a defesa dos direitos humanos, de uma visão pluralista do judaísmo, da avaliação de episódios de antissemitismo (que os governos israelenses muitas vezes sobrestimaram para promover a emigração), o reconhecimento da diversidade de correntes religiosas dentro do judaísmo ou a procura de uma solução pacífica para o conflito com os palestinos, a relação entre os governos de Israel e as diásporas contém tensões geralmente não explicitadas.

As lições extraídas do Holocausto, de defesa dos direitos humanos, são colocadas em suspenso frente a eventuais transgressões das forças armadas israelenses na medida em que elas protegem o país de ataques inimigos. A ocupação dos territórios palestinos após a guerra de 1967, e posteriormente a política de colonização, são ignoradas ou tratadas com declarações inócuas sobre a expectativa de uma futura solução do conflito.

Na medida em que o Estado de Israel transforma a ocupação em permanente, por mais que se distinga entre atitudes de governos e a existência do próprio Estado (distinção, essa, que se sustenta em certo excesso de boa vontade, mas também no perigo real representado por aqueles que negam o direito a existência de Israel), a tensão pode aumentar os conflitos e rupturas no interior das comunidades judias na diáspora. Governos de Israel, como o atual com seu ataque as instituições democráticas, com ministros que não se envergonham de expressar em público opiniões racistas e xenofóbicas, e que se aproximam de grupos de extrema direita europeia, dificilmente poderão seguir sendo tratados com condescendência.


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